"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

segunda-feira, dezembro 28, 2009

EM 2010, OUVIR, (RE e ANTE)VER, CHAMAR

Apresentei esta "prédica" na Paróquia Evangélica Espírito Santo, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), em Novo Hamburgo (RS), no dia 27 de dezembro de 2009, convidado por minha querida e amada Esposa, a Pastora Carla Saueressig da Silva.


INTRODUÇÃO

Vai chegando ao fim o ano 2009. Nos últimos doze meses estivemos ocupados com muitas coisas em várias situações: preocupamo-nos com o bem-estar de nossos familiares, dedicamo-nos às nossas atividades profissionais (ou estivemos à procura de um emprego), estivemos atentos à nossa saúde, cuidamos de nossas casas, compramos, vendemos, negociamos, viajamos, sorrimos, choramos. Em nossa paróquia, fomos pastoreados pela Pastora Carla – a Pastora mais linda da IECLB –, participamos dos cultos, das reuniões de jovens, do Grupo Reviver, dos jantares dos homens e das mulheres. Talvez, muitas dessas coisas faremos novamente em 2010, porém, como diz a música, “o meu destino será como Deus quiser”.

É claro que, segundo cremos, Deus realmente faz o que quer e é nos acontecimentos da vida que somos chamados a refletir sobre o que ele está fazendo e como podemos experimentar e participar disso. Santo Agostinho dizia que Deus muda as coisas sem mudar o seu plano.[1] Em outras palavras, ainda que nunca compreendamos como, é apenas diante de Deus que o tempo e a vida, absolutamente complexos e imprevisíveis, não podem esconder as cartas do seu jogo.

2010 é um mistério ao qual estamos prestes a passar. Não somos capazes (e ninguém é) de prever o que irá acontecer e que tipo de circunstâncias iremos enfrentar. Todavia, como cristãos, podemos adotar algumas atitudes através das quais seguir pelas estradas que a vida, e nós inseridos nela, for construindo diante de nós. Com a leitura de DEUTERONÔMIO 4.1-9, convido vocês a, em 2010, OUVIR, (RE)VER E CHAMAR.


Em 2010, o que eu devo ouvir?

1o) OUVIR A LEI E AS PROMESSAS DE DEUS (v. 1-2)

O livro de Deuteronômio, o quinto do Antigo Testamento da Bíblia cristã, é um conjunto de discursos de Moisés, através dos quais este repassa a trajetória dos israelitas desde o monte Horebe (em Êxodo, chamado “Sinai”) até às fronteiras da terra de Canaã. A geração que saíra do Egito, com a exceção de Josué e Calebe, morrera durante a peregrinação, visto que, tendo chegado já antes à beira da terra prometida, descreu da palavra de Deus que Moisés trouxera (Números 14.26-30). Uma nova geração surgiu (Números 14.31) e está prestes a entrar na posse que Deus havia prometido.

Moisés recomenda-lhes, pois, a OUVIR. Ouvir o quê? Os estatutos e os juízos de Deus que o profeta ensinava e a promessa de Deus que o profeta assegurava. É claro que o OUVIR não se refere apenas à decodificação pelo nosso cérebro das ondas sonoras que nos chegam aos ouvidos. OUVIR, como diz o texto, é APRENDER (“ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino”), CUMPRIR (“para os cumprirdes”) e CRER (“possuiais a terra que o SENHOR, o Deus de vossos pais, vos dá”). Segundo Moisés, quando ouvimos a Lei e a Promessa de Deus encontramos a VIDA (“ouve... para que vivais”). Antes de mais nada, devemos OUVIR para que VIVAMOS, isto é, não nos tornemos reféns das circunstâncias, para bem ou para mal, mas sim agarremos a esperança de que podemos, por Deus, VIVER apesar de tudo.


Em 2010, o que eu devo (re)ver?

2o) (RE)VER OS ERROS E OS ACERTOS E (ANTE)VER O QUE SERÁ CASO TENHAMOS DEUS CONOSCO (v. 3-6)

Por que (re)ver os erros? A fim de que lembremos a dor que nos trouxeram e não cometê-los novamente. Israel envolveu-se com o povo de Moabe e seu deus Baal-Peor e pagou um preço caro (Números 25.1-9).

Por que (re)ver os acertos? Para sentirmos a alegria, nossa e dos outros, pelo que nosso bom proceder trouxe e identificarmos mais este marco da estrada por onde Deus quer que vamos. Alguns de Israel não seguiram Baal-Peor, como Finéias, neto de Arão (Números 25.6-13), e puderam permanecer até aquele momento de entrar em Canaã.

Como assim antever o que será se tivermos Deus conosco? A questão não é o que vamos ganhar ou perder, mas como lidaremos com o que vier. Se procurarmos por Deus, priorizaremos a responsabilidade e a ética em nossos caminhos e extrairemos sabedoria da vida. Era o que Deus aconselhava e prometia a Israel: sabedoria e justiça.


Em 2010, por quem eu devo chamar?

3o) CHAMAR POR DEUS SEMPRE, POIS É CERTO QUE ELE SE ACHEGARÁ A NÓS (v. 7)

Embora tivesse passado por fracassos e sofrimentos, Israel podia dizer: “O SENHOR achega-se a nós todas as vezes que o invocamos!” É um engano achar que Deus não nos receberá porque pecamos. Lutero agradecia a Cristo por este tomar o pecado dele, dando-lhe em troca a sua graça.[2] Lutero sabia que, quando vamos a Cristo em pecado, este nos recebe para conduzir-nos à confissão, ao perdão e à transformação pelo poder do Espírito Santo.

É também um engano achar que não importa que pequemos, já que Deus nos receberá. Quem pensa assim, não achará Deus, pois de fato não o está procurando.

Outro equívoco é pensar que Deus não nos ouve porque nosso sofrimento não passou. Infelizmente, mesmo que esta seja uma questão que inquietará a mente humana enquanto esta existir, o sofrimento faz parte da vida e, em meio a ele, devemos fazer como Jesus: gritar para Deus do fundo do nosso ser (Marcos 15.34; cf. Hebreus 5.7-10). Ainda que se sentisse abandonado, o Nazareno gritou na cruz porque sabia que Deus iria ouvir seu grito. O sofrimento, assim como a satisfação, vai e vem, mas a proximidade de Deus nunca desaparecerá. Em 2010, e por toda a sua vida, sempre chame por Ele.


CONCLUSÃO

Em 2010, OUÇA a Lei e as Promessas de Deus; (RE)VEJA os erros e os acertos e (ANTE)VEJA o que será se tiver Deus com você; e CHAME sempre por Deus, pois Ele está pronto para achegar-se a você. Amém


Notas:
[1] SANTO AGOSTINHO. Confissões, Livro I, 4. In: http://www.veritatis.com.br/article/2887. Acesso em 28/12/2009.
[2] “Senhor Jesus Cristo, tu és minha justiça, eu, porém, sou teu pecado: Levaste sobre ti o que é meu, e deste a mim o que é teu. Tomaste sobre ti o que não eras, e deste a mim o que eu não era.” In: http://www.luteranos.com.br/categories/Quem-Somos/Nossa-Hist%F3ria/Martim-Lutero/Ora%E7%F5es-de-Lutero/. Acesso em 28/12/2009.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

A BÍBLIA SAGRADA: ANTIGO E NOVO TESTAMENTO. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

terça-feira, dezembro 08, 2009

VÉSPERAS DO CASÓRIO

É gostoso reunir-se aos amigos
E observar os passarinhos briguentos
Disputando aguinha açucarada,
E, em um de raros momentos,
Avezinha lépida numa cordinha de varal empoleirada,
O beija-flor ansiando matar a sede, instinto dos mais antigos.


Já puderam ouvir o au-au de um cãozinho simpático
Ao pé da mesa de um casal fantástico,
cuja bondade e amizade convidaram-nos para o almoço?
Minha Gaúcha e eu nem sentimos o tempo passar
Aconchegados nas vozes e recordações que habitam aquele lar,
Da graça divina presenteados com o endosso.


Nesse tempo, o casório aguarda-nos com expectativa
Recomendando-nos à companhia das flores:
Azaleias, gérberas, amores-perfeitos, margaridas, um florilégio!.
As hortênsias abrem-se neste dezembro de emoção festiva
E, ao lado das irmãs, vivificam com suas cores
A estradinha dos noivos que vão alegres à igrejinha do relógio!

sexta-feira, novembro 27, 2009

FRAGMENTOS DE IDEIAS SOBRE TEMPO, ETERNIDADE E RESSURREIÇÃO

De vez em quando, penso nas noções de tempo e eternidade. Na relação do tempo com a matéria, esta sofre contínua transformação no transcorrer daquele. Essa transformação parece partir da organização para a desorganização, da agregação para a desagregação, da harmonia para o caos. Se considerarmos, inclusive, o pensamento, concluiremos que este também sofre mudança com o passar do tempo. O efeito do tempo sobre a matéria, portanto, é a deterioração, o desgaste, o colapso molecular.

Se algum físico ou biólogo ou teólogo ler esses apontamentos, não repare a minha ignorância. Trata-se de reflexões livres, abertas às correções de quem eventualmente entenda melhor esses assuntos.

Bem, se o tempo traz consigo a decrepitude, e a duração impõe às coisas um prazo de validade, a morte é resultado da passagem do tempo. Diante disso, ponho-me a questão da ressurreição de Jesus e, por extensão, a ressurreição prometida pelo Novo Testamento.

Não há dúvida de que, do ponto de vista natural, a transformação da matéria é uma lei irrevogável. O tempo nada mais é do que mudança, não-permanência. Desse modo, eternidade poderia ser entendida como permanência, não-mudança?

Acredito que a Bíblia judaica (e sua variante, o Antigo Testamento cristão) não conhece, em relação a este universo, a ideia de eternidade. A palavra עוֹלָם ('olam) seria talvez melhor traduzida por "perpetuidade", isto é, a permanência de um costume, de uma lei ou de uma etnia através do tempo pela transmissão ou pela renovação, sempre dentro da realidade humana, que é terrena e finita.

O Novo Testamento, por sua vez, trabalha com a noção de αιων (aion), porém, é claro, utiliza as categorias de tempo e espaço inscritas na linguagem humana. Aqueles que "vivem" ou "reinam para sempre", cantam, suplicam, são elevados da terra ao céu (1Tessalonicenses 4.13-18; Apocalipse 7.9-17; 11.3-14; 22.1-5) - imagens nas quais está incrustada a dimensão da duração.

Todavia, se eternidade for permanência, não-mudança, logo, dentro das categorias deste universo, isso implicaria um congelamento, isto é, ausência de movimento, transformação e, no caso humano, pensamento. Caso eternidade seja o contrário do tempo, não pode haver vida na eternidade. Contudo, caso liguemos o conceito à promessa neotestamentária, restará compreender a eternidade como algo que não faz parte desta realidade e, por conseguinte, não tem nada a ver com movimento, ou tempo, ou espaço, ou sentimento! A metáfora que ouvi certa vez, segundo a qual, quando um passarinho terminasse de levar o último grão de areia da Terra à Lua, seria o começo da eternidade, é completamente inadequada para descrever o conceito. Eternidade e tempo não são noções antitéticas, já que, até onde sabemos, no universo não existe o contrário do tempo, um antitempo. Eternidade não é tempo sem fim. O tempo é a realidade que conhecemos. A eternidade é, em nossa experiência, apenas abstração.

Jesus ressuscitou e tornou-se eterno? Supondo que isso tenha acontecido, não teria sido o caso de um cadáver que voltou à vida nesta realidade. É provável que o túmulo vazio seja uma imagem a indicar que, após a sua morte, Jesus não pertence mais a este mundo. Entretanto, as suas aparições representariam a convicção de que Jesus continua a ser uma presença viva e atuante entre aqueles que crêem nele e, para estes, também no mundo. Na experiência de seus adeptos, Jesus teria se tornado um poder que transcendera a realidade de um defunto numa tumba: "(...) um jovem (...) vestido de branco (...) lhes disse: Não vos atemorizeis; buscais a Jesus, o Nazareno, que foi crucificado; ele ressuscitou, não está mais aqui; vede o lugar onde o tinham posto." (Marcos 16.5, 6)

Não se trata de defender qualquer visão gnóstica. Não estou dizendo que outro morreu em lugar de Jesus. Estou admitindo que o homem Jesus morreu. Também não estou afirmando que um Cristo cósmico desligou-se do ser humano Jesus no momento da morte deste. Assumo o que diz o Novo Testamento: o Crucificado é o Ressuscitado!

Por outro lado, o que aconteceu historicamente com o corpo de Jesus não dá para saber. Deteriorou-se? Caso admitamos a lei incontornável da transformação da matéria, sim. Foi sepultado num túmulo desconhecido? É curioso que a tradição do túmulo vazio foi preservada nos quatro evangelhos canônicos (Mateus 28.1-10; Marcos 16.1-8; Lucas 24.1-12; João 20.1-10). Sim, preservou-se a tradição do túmulo vazio (que não aparece fora dos evangelhos), mas a localização do túmulo, não. Localizar o túmulo de Jesus para verificar se ele realmente não está lá negaria a crença no que Deus fez com ele.

O cadáver de Jesus negaria a fé em sua ressurreição? Se a ressurreição for assumida como evento historicamente literal de revivescência de um cadáver, sim. Se for confessada como esperança acerca da entrada numa forma de existir em relação à qual "as antigas coisas" deste cosmo (o tempo e seus efeitos de mutação sobre a matéria) passaram, não. É como se a imagem da tumba sem o cadáver fosse um sinal da fé: não se procura o Jesus que se crê onde termina a vida humana, já que ele não pode ser detido por aquilo que põe um ponto final à existência dos seres orgânicos. Nem mesmo se deve tentar achá-lo na mente humana, já que a fé não teria sido criada por esta. A fé surge do encontro. A Igreja crê que Jesus, após sua morte, voltou a encontrar-se com seus seguidores. Ele fê-lo (e, na fé, certamente o faz) numa modalidade de existência completamente diferente, que não é deste universo, porém, de algum modo, toca-o.

A ressurreição imortalizou Jesus, por ela Deus fez dele eterno. E, sendo eterno, não é deste mundo, não está no tempo, mas apresenta-se aos seres humanos temporais. Somente seres temporais têm fé. A fé espera por aquilo que será quando tudo mais deixar de ser. Contudo, como será aquilo que a fé espera é um mistério. Tampouco é possível perguntar quando será, já que o tempo, conforme foi dito, não está incluído nesse mistério. A vida, a partir do que sabemos, está ligada ao tempo e à mudança. A eternidade está ligada à fé. A fé espera por Deus, embora o que quer que ele venha a fazer (e como quer que queira fazer) continue desconhecido.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
A BÍBLIA SAGRADA: ANTIGO E NOVO TESTAMENTO. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

quinta-feira, novembro 19, 2009

PECADO E MORTALIDADE

Enviei as considerações abaixo ao Professor Doutor Euler Renato Westphal, docente da Universidade da Região de Joinville (SC) e da Faculdade Luterana de Teologia (SC), a respeito de uma conversa que tivemos durante um encontro de obreiros da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB). Na ocasião, acompanhei a minha noiva, a Pastora Carla Saueressig. Às minhas observações o Professor Euler ofereceu as suas profundas e necessárias ponderações, prevenindo-me quanto a um posicionamento absolutizante, pelo que pude agradecê-lo.

Olá, Professor Euler.

Sou o Ruben. Conversamos no intervalo de sua palestra para os obreiros da IECLB no Sínodo Rio dos Sinos, em São Leopoldo, no dia 30/09. Eu havia perguntado sobre como entender a questão do pecado, uma vez que as ciências bíblicas (principalmente a partir do método histórico-crítico e da história das formas) descobriram que Gênesis 1 - 11 é uma narrativa mítica. Ou seja, o mito não descreve com exatidão, apenas reflete a realidade social vivida através de uma construção, digamos, "fabulosa".* Minha questão é a seguinte: Não acredito que um dia os seres humanos tenham sido imortais e que tenham trazido a mortalidade, do ponto de vista biológico e fenomenológico, ao universo inteiro por causa de uma transgressão em um jardim mítico. Porém, é mais do que evidente que as ações humanas, desde que se adquire a consciência, parecem tender para o desarranjo e a destruição. Será, então, que é a consciência de si mesmo que já traz em si o potencial para o mal? Desse modo, desde que se torna consciente, o ser humano já possui essa ambiguidade moral. Se assim é, a conclusão é que Deus nos criou desse modo. Não nos tornamos assim em um determinado momento: nós sempre fomos assim. Dá a impressão de que Gênesis pode ser entendido a partir disso. O pecado no Antigo Testamento parece mais uma realidade constitutiva do ser do que adquirida em algum momento pelo ser.

Agradeço a atenção lá na reunião no Sínodo. Que Deus o abençoe em seu trabalho.

Respeitosamente,

Ruben Marcelino

* Com o termo "fabulosa", refiro-me ao caráter literário. A fábula pertence ao gênero narrativo. Nela, os animais participam do enredo e exibem características humanas - fala, sentimentos, etc. Geralmente, a fábula possui um cunho moral. Poderia ser o caso de Gênesis 3.

quarta-feira, novembro 04, 2009

O ZUMBI

Saiu da cova o zumbi
para festejar o Dia de Finados.
"Talvez" – pensava – "hoje e aqui,
os mortos não sejam mais desprezados."

quarta-feira, outubro 07, 2009

O QUE SIGNIFICA CONHECER DEUS?

Apresentei esta "prédica" na Paróquia Evangélica Espírito Santo, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), em Novo Hamburgo (RS), no dia 04 de outubro de 2009, convidado pela Pastora Carla Saueressig, com quem vou casar.


INTRODUÇÃO

Uma pergunta importante deve estar presente durante toda a vida de um cristão: “Quem é Deus?” Mais do que uma questão filosófica, essa pergunta tem a ver com aquilo que faz de alguém um cristão realmente. Jesus deu respostas fundamentais. “Deus é espírito”, disse ele à mulher samaritana, de acordo com o Evangelho de João (4.24). Assim, Deus é uma realidade superior à vida simplesmente terrena. Por isso, o ser humano só pode se aproximar dele espiritualmente, isto é, pela adoração.

“Eu e o Pai somos um”, afirmou Jesus para os judeus de sua época, ainda segundo o Evangelho de João (10.30). O Pai e Jesus, Seu Filho, possuem um relacionamento eterno e indivisível. Por isso, a Igreja irá confessar que Deus é triúno: Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. O Deus triúno trabalha para a nossa salvação: o Pai enviou Jesus Cristo ao mundo. Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para nos dar vida nova. O Espírito Santo nos leva a crer em Jesus e, a partir dessa fé, passa a habitar em nós, confirmando que somos filhos de Deus (Romanos 8.16).

A Reforma Protestante afirmou que Deus se manifesta por meio de Sua Palavra. De acordo com Lutero, Deus faz tudo por meio de sua palavra.[1] Daí, a importância da pregação bíblica para que o cristão conheça quem é Deus. Sendo assim, que outros exemplos na Bíblia podem nos dar lições sobre o conhecimento de Deus em nossa vida? O profeta Oséias trata dessa questão. Vamos ler os seguintes textos: Oséias 4.6; 5.15 – 6.6. A partir deles, quero refletir com vocês sobre o seguinte tema: "O que significa conhecer Deus?"


1. CONHECER DEUS É MAIS DO QUE DESEJAR CONHECÊ-LO

O profeta Oséias viveu no reino de Israel, ao norte da Palestina, durante o reinado de Jeroboão II (Oséias 1.1; 2Reis 14.23-29). Nessa época, o povo adorava Iavé, o SENHOR, o Deus de Israel, mas também cultuava outros deuses (Oséias 4.17; 14.8). Baal, um deus associado à chuva, era um desses (Oséias 2.13; 13.1). Assim, o que Iavé fazia por Israel era atribuído a Baal (Oséias 2.8).

Quando Oséias ameaça seus ouvintes com o castigo, eles logo respondem com uma declaração de fé em Deus aparentemente sincera, de que a solução para eles era buscar conhecer a Deus (Oséias 5.15 – 6.3). Mas, apesar do que diziam, Deus lhes fala: “Porque o vosso amor é como a nuvem da manhã e como o orvalho da madrugada, que cedo passa” (Oséias 6.4).

É importante que nosso conhecimento de Deus não fique apenas em palavras sobre o desejo que temos de conhecê-lo. As pessoas costumam dizer que acreditam em Deus. Só que acreditar que Deus existe e que pode fazer algo por nós não garante que o conheçamos. Israel dizia: “Conheçamos e prossigamos em conhecer ao SENHOR (...) ele descerá sobre nós como a chuva (...)” (Oséias 6.3). Mas o profeta exigia deles algo mais.


2. REJEITAR A PALAVRA DE DEUS É REJEITAR CONHECER DEUS

Deus, através de Oséias, diz ao povo que eles estão sendo destruídos por falta de conhecimento (Oséias 4.6). E por que lhes faltava o conhecimento? O profeta diz que os sacerdotes rejeitaram a Lei de Deus. Faltava a Israel o conhecimento da Palavra de Deus que o sacerdote deveria ensinar. Nela, o povo aprenderia a adorar a Deus e a agir de acordo com sua vontade (Oséias 4.9-10). No Novo Testamento, Paulo irá dizer: “Qual, pois, a razão de ser da lei? Foi dada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a quem se fez a promessa (...)” (Gálatas 3.19). Através da Lei, Deus quer prevenir o seu povo contra o pecado e também revelar o Salvador, Jesus Cristo. Através da palavra de Cristo, recebemos o evangelho da salvação (Romanos 10.13-17).

Assim, conhecer Deus significa conhecer Sua Palavra, isto é, a Lei e o Evangelho. A Lei revela que somos pecadores e precisamos da graça de Deus. O Evangelho nos anuncia que somos salvos do pecado através da obra de Cristo (Romanos 3.19-28). Infelizmente, o Israel de então permaneceu longe da Lei de Iavé e o resultado foi esse: atacados pelo povo assírio, morreram ou tornaram-se escravos (2Reis 17, especialmente v. 22 e 23).


3. CONHECER DEUS SIGNIFICA DEMONSTRAR MISERICÓRDIA COMO SUA PALAVRA RECOMENDA

Israel, na época de Oséias, oferecia sacrifícios ao seu Deus (Oséias 6.6; 8.13). Mas Iavé, o SENHOR, não os aceitava, pois não vinham acompanhados do conhecimento de Deus. Este conhecimento, requerido por Deus na palavra do profeta, é a misericórdia. A palavra hebraica para misericórdia é hesed[2], que pode também ser traduzida por amor[3] e comprometimento[4]. Conhecer Deus é amar Deus e, portanto, comprometer-se com a Palavra de Deus. Lemos isso em Deuteronômio 6.5-6: “Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração”.

Conhecer Deus é também amar o próximo e comprometer-se com ele. Em Levítico 19.18 está dito: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR”. Deus é conhecido e reconhecido quando amamos o próximo e nos comprometemos com ele.

O profeta Oséias estava reagindo contra algo muito diferente da misericórdia, do amor e do comprometimento desejados por Deus: “O que prevalece é perjurar[5], mentir, matar, furtar e adulterar, e há arrombamentos e homicídios sobre homicídios (...) Como hordas de salteadores que espreitam alguém, assim é a companhia dos sacerdotes, pois matam no caminho para Siquém; praticam abominações” (Oséias 4.2; 6.9).

Temos demonstrado conhecimento de Deus, mostrando misericórdia e comprometimento em nossos relacionamentos?


CONCLUSÃO

Aprendemos com o profeta Oséias que conhecer Deus não é apenas desejar conhecê-lo, mas encontrá-lo em sua Palavra. A Palavra de Deus revela a vontade de Deus para nós. Nesta Palavra reconhecemos que Deus deseja de nós amor e comprometimento uns para com os outros. Que Deus nos ajude a viver assim. Amém!


Notas:

[1] JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero, p. 17.
[2] חֶסֶד
[3] A Bíblia de Jerusalém, p. 1723.
[4] KIRST, Nelson et.alii. Dicionário hebraico-português e aramaico-português, p. 73.
[5] Perjurar: jurar falso; quebrar o juramento. Cf. http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues. Acesso em 03 de outubro de 2009.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista. São Paulo: Paulus, 1985. 2366 p.

A BÍBLIA SAGRADA: ANTIGO E NOVO TESTAMENTO. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Trad. Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. Sander e Letícia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. 188 p.

KIRST, Nelson et.alii. Dicionário hebraico-português e aramaico-português. 16. ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2003. 305 p.

http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues. Acesso em 03 de outubro de 2009.

quinta-feira, setembro 24, 2009

UMA ALMA PENADA NA COZINHA

Os cinco primos preparavam-se para dormir na sala do segundo piso do sobrado em que três deles moravam. O edifício, uma construção bem antiga, estava localizado bem em frente à praça do centro da pequena cidade de Riacho das Rolinhas, na Zona da Mata de Minas Gerais.

A noite estava agradável, levemente fria. Os sinos da igreja matriz, que ficava a poucos metros do sobrado, parcialmente encoberta pelas palmeiras da praça, há pouco badalavam: eram onze horas. Após muita conversa, risos e televisão, os garotos trouxeram os colchões, estendendo-os no chão do cômodo espaçoso, coisa que eles costumavam fazer várias vezes, sempre que podiam estar juntos.

A ocasião era toda vez especial. Dormir naquela sala parecia de novo uma experiência diferente. Olhar ao redor e perceber todo aquele espaço tinha um sabor de aventura: o teto alto, as paredes com vigas de madeira, o corredor que dava para os quartos e a cozinha mais para os fundos do andar, o chão de tábuas meio rangentes, os janelões com topo em semicírculo virados para a praça. As luzes dos faróis dos veículos que, de vez em quando, passavam lá fora projetavam-se para dentro do recinto já escuro assumindo o formato desses janelões. O movimento delas, orientado pelo deslocamento de sua fonte, fazia parecerem foguetes a percorrer o universo das paredes e do teto até se dissiparem nas sombras de um canto da sala. Para a imaginação daqueles amigos, era um espetáculo excitante, um verdadeiro "cinema". A sessão daquela noite, entretanto, foi curta. Cansados à beça, logo pegaram no sono.

Lá pelas duas da madrugada, Benedito sentiu tocarem seu ombro.

- Bene. Bene. Tá acordado? - sussurrou Márcio querendo saber.

- Agora tô! - respondeu o primo contrariado - Que foi?

- Maior vontade de ir ao banheiro.

- Ué, esqueceu onde fica?

- Não é isso. Vamos lá comigo?

- Quê?! Que história é essa?!

- Tá escuro pra caramba.

- Já ouviu falar em lâmpada elétrica?

- Só tem lâmpada lá nas outras salas, depois do corredor. E ainda tem a sala de jantar e a cozinha antes de chegar no banheiro.

- E...?!

- Aquele lugar é assustador. Já ouvi dizer que viram vultos ali à noite.

Benedito não estava acreditando.

- Peraí, cê atrapalha o meu sono por causa de medo de fantasmas?

- Vai dizer que tem coragem de ir lá sozinho!

- Claro! Só que eu não quero mijar!

- Mas eu sim. Vamos lá! Tô apertado!

- Cara, não tem nada lá. Pode ir tranquilo.

- E se eu passo ali nas escadas que vão lá pra baixo e dou de cara com alguma coisa me olhando?

- Só faltava essa!

- Tô falando sério, Bene! Essas histórias que contam sobre esta casa fazem a gente cagar nas calças! Sabia que a tia Santinha morreu aqui?

- Sim, sabia. A irmã do vovô morreu no dia em que eu fiz um ano.

- Viu?

- Então, tá! Com tanta coisa melhor pra fazer no outro mundo, a tia Santinha vai ficar na escada e esperar você passar só pra ficar olhando a sua cara?

- Ah, sei lá! E aí?

Benedito sabia que Márcio não iria parar de perturbar. Levantou-se. Virado para o corredor, contra a parede dos janelões, olhou para a direita. Francisco, Fábio e Zé, os outros primos, os que moravam na casa, estavam ferrados no sono. Virou de novo e ergueu o braço bruscamente:

- Não acenda a luz! Vamos logo!

- Tá. - concordou Márcio.

Saíram pelo corredor escuro em direção às escadas que ficavam no meio da primeira das duas salas que possuíam iluminação. "Isso aqui tá escuro mesmo", pensou Benedito. De repente, firmando os olhos, percebeu que o primo não estava na sua frente. Mesmo sem luz, dava pra ver a silhueta, mas, num relance, já não a percebia mais. Ficou confuso por uns brevíssimos mas eternos segundos, subitamente ouviu um fio de voz atrás de si:

- Bene.

Caraca, que susto! Benedito virou e, mesmo baixa, sua voz estava furiosa:

- BOSTA!!!! Que cê pensa que tá fazendo?!

- Calma aí! Eu só parei porque pensei ter ouvido um barulho. Cheguei pro lado e aí você passou na minha frente. Se assustou?

- Mas é lógico que não! Anda logo!

Márcio passou à frente e, em seguida, chegaram às escadas. Ao passar por elas, deu uma olhada lá pra baixo, mais por nervosismo do que por coragem. O corredor que dava para a porta da rua era só sombras. Parece que a escuridão por um momento o hipnotizara, só que o empurrão do primo logo o tirou do transe:

- Vai!

Entraram na outra sala. Por ela chegariam à sala de jantar. Benedito acendeu a luz.

- Bem, vai lá.

- Hã?! O banheiro é só depois da cozinha.

- Então! Eu fico aqui esperando cê voltar.

- Ah, sim! De que adianta ter vindo só até aqui? Pois se é lá que os monstros estão!

- Eu nunca escutei tanta idiotice junta!

- Ah, é? E por que não vai comigo até lá?

- Cara, dá um jeito de ir mijar de uma vez! Eu quero dormir!

- Você tá aí se borrando! Quem diria!

- Quem diria o caramba! Tu é que prefere se mijar a encarar o caminho até o banheiro! E tudo por causa de fantasminhas! Seja macho!

Lá nos fundos, a porta do banheiro rangeu. O vento começou a assoviar. Os dois garotos pararam de discutir imediatamente e se voltaram para a direção dos sons. O que viram os deixou petrificados. Do umbral de uma parede que separava a cozinha de uma pequena área usada como depósito de coisas velhas, e onde também ficava o banheiro, surgira alguma coisa. Parecia uma figura humana, mas estava recurvada. Os pés, arrastando no assoalho, faziam um ruído de gelar a espinha. Movendo-se lentamente, a criatura se confundia com o ambiente lúgubre, ora sumia ora aparecia. A cada passo que dava, gemia como alma penada, feito alguém que era torturado. E seguia direto para os meninos.

Os troncos e braços de Benedito e Márcio não acompanharam suas pernas e um caiu por cima do outro. Desembestados, levantaram de qualquer jeito e trombando um no outro correram de volta aonde dormiam e fecharam a porta. Desabaram nos colchões, cobrindo-se da cabeça aos pés. Deu uma dor de barriga em Benedito, mas ele não podia sair dali. Márcio, que quase molhara as calças, decidiu fazer de tudo para segurar a vontade de urinar. Ficariam onde estavam até amanhecer.

Enquanto saía da cozinha, tia Teresinha, a mãe dos três garotos que dormiam tranquilamente lá no cômodo de frente do sobrado, notou adiante uma luz acesa. Passou a sala de jantar, por cujas janelas penetrava um luar fraco, e entrou no local iluminado. Ao apagar a luz, lembrou que deixara a janela do banheiro aberta. Havia sentido um vento frio assim que saíra de lá. Não se preocupou. Estava bem cansada. E o repouso da noite não estava sendo bom, já que o lumbago castigava-lhe as costas. A dor era tanta que até andar era custoso. Ah, mas no dia seguinte iria querer saber que barulhão era aquele que ouvira! Só podiam ter sido aqueles meninos capetados! Em tempo de atrapalhar o descanso dos outros, sô! Uma falta de consideração!

Voltando por onde viera, a senhora entrou à direita numa porta e foi para o quarto se deitar.

quinta-feira, setembro 10, 2009

EXPERIMENTAR COM O CORAÇÃO

"Nós devemos estudar um texto bíblico para experimentá-lo com o coração".

Carla Saueressig

A ASSOMBRAÇÃO DO CASARÃO

Lá, naquele casarão
Triste e envelhecido,
Mora uma assombração,
Um vulto esquecido.

Se acontece, nas noites escuras,
De uns gaiatos ali se aventurarem,
Fazendo ela pavorosos ruídos soarem,
Põe pra correr as pobres criaturas!

Dizem que fora uma alma rabugenta,
Que não gostava de outras gentes,
Sempre enclausurada na mansão cinzenta.

E agora, como não tem mais dentes,
Remói com o vazio uma solidão morrinhenta,
Arrastando-a pelos cantos como correntes.

quinta-feira, agosto 20, 2009

JESUS, O NOVO TEMPLO

Apresentei esta "prédica" na Paróquia Evangélica Espírito Santo, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), em Novo Hamburgo (RS), no dia 16 de agosto de 2009, convidado pela Pastora Carla Saueressig, com quem vou me casar.


Texto: Lucas 23.44-49.

INTRODUÇÃO

A celebração da Ceia do Senhor é uma ocasião importantíssima para a igreja cristã. Martim Lutero considera a Santa Ceia um testamento de Cristo: “Cristo partilha seu corpo e sangue mediante o pão e o vinho, enquanto o ser humano recebe essas dádivas” .[1] Hoje, pela manhã, ouvia na Rádio União, um coral que cantava o seguinte: “Por um pedaço de pão e um pouquinho de vinho, Deus se tornou refeição e se fez o caminho”.[2] Cabe, portanto, neste momento, pensar a respeito da morte de Jesus. Particularmente, gostaria que fizéssemos a leitura da narrativa em Lucas 23.44-49.


1. O CENÁRIO DA MORTE E O VÉU RASGADO

É uma narrativa curiosa. Ela também aparece em Mateus (27.45-56) e Marcos (15.33-41). As sequências narrativas são as seguintes:




Além das diferenças de tamanho, detalhes e estrutura que apresenta de evangelho para evangelho, a narrativa é curiosa porque coloca no cenário da morte de Jesus uma informação que aparentemente não tem nada a ver: o véu do Templo é rasgado. De repente, o leitor é transportado do Calvário para o Templo de Jerusalém e, rapidamente, trazido de novo ao Calvário. Por quê?

2. O TEMPLO DE JERUSALÉM E O VÉU DO SANTO DOS SANTOS

O Templo era uma instituição muito importante para o judaísmo daquela época. Segundo os livros de Samuel e Reis, havia sido prometido por Deus a Davi: Salomão, o filho de Davi, construiria o Templo e ali Deus habitaria no meio de Israel (2Samuel 7.12-13; 1Reis 6.12-13). O 1º Templo foi construído, então, por Salomão. Após o exílio babilônico, foi reconstruído no tempo de Zorobabel, durante o período persa (cf. Esdras 4.24 - 6.22; Ageu 1.1 - 2.9). Este Templo passou por restaurações durante o período de Herodes, o Grande[3], o mesmo que perseguiu Jesus menino (Mateus 2).

No interior do edifício do Templo, um véu separava o Santo dos Santos do Santo Lugar, o salão maior. O véu é antes mencionado em Êxodo 26.31-33: “Pendurarás o véu debaixo dos colchetes e trarás para lá a arca do Testemunho para dentro do véu; o véu vos fará separação entre o Santo Lugar e o Santo dos Santos” (v. 33).[4] Em seguida, também se fala dele durante a construção do 1o Templo: “E cobriu Salomão a casa por dentro de ouro puro, e, com cadeias de ouro, pôs um véu diante do oráculo, e o cobriu com ouro” (1Rs 6.21; cf. 6.16)[5]. O véu, portanto, separava o Santo Lugar do Santo dos Santos, tanto no Tabernáculo de Moisés quanto no Templo de Salomão.

O que se fazia no Santo dos Santos? De acordo com Levítico 16 (cf. 23.26-32), o sacerdote entraria uma vez por ano (v. 34) “para dentro do véu” (v. 11-12), com vestimentas sagradas especiais e banhado em água (v. 4), a fim de oferecer o sangue por meio do qual faria a expiação dos pecados por si e sua família (v. 11) e pelo povo (v. 15). O sangue era oferecido sobre o propiciatório, a peça que ficava por cima da arca da Aliança (v. 14-15). O chamado “Dia da Expiação” ocorria no dia 10 do mês de Tishrei, o sétimo do calendário judaico (Levítico 23.27). Neste ano de 2009, o Dia da Expiação (Yom Kippur) será comemorado em 28 de setembro.[6]

3. O VÉU DO TEMPLO E A MORTE DE JESUS

Podemos pensar que, quando os três primeiros Evangelhos mencionam rapidamente o véu do Templo na narrativa da morte de Jesus, pretendem fazer uma relação. O que o véu rasgado tem a ver com a morte de Jesus?

Se o véu que cobria a entrada do lugar onde a expiação era feita foi rasgado, concluímos que foi retirado o impedimento de acesso à presença de Deus. De acordo com o Levítico, Deus aparecia no Santo dos Santos por sobre o propiciatório (16.2). Já que o sacerdote deveria apresentar ali o sangue para fazer a expiação, a morte de Jesus é divulgada nos Evangelhos como a oferta de expiação aceita definitivamente por Deus. É possível dizer que a morte de Jesus representa, ao mesmo tempo, a manifestação de Deus que oferece o perdão e a oferta entregue a Deus pelos pecados. É em Jesus e por Jesus que se dá o perdão dos pecados e a reconciliação com o SENHOR.

Se notarmos a linguagem de Lucas, perceberemos que, após se rasgar o véu no Templo, Jesus entrega a sua vida ao Pai. Parece que o autor quer dizer que não é mais no Templo e do sacerdote que Deus receberá a oferta expiatória e perdoará o seu povo. Isso aconteceu no Calvário, onde, na cruz, Jesus ofereceu a sua vida a Deus. No Evangelho de João, inclusive, o corpo de Jesus é chamado de “templo” (João 2.21).[7] Na Carta aos Hebreus, o autor chama a carne de Jesus (isto é, o seu corpo) de “véu”, através do qual o Filho de Deus consagrou um caminho novo e vivo de perdão (Hebreus 10. 20).

Com este episódio, o evangelista pretende confirmar a fé com a qual o destinatário de seus livros, Teófilo, fora instruído (Lucas 1.4): “Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão dos pecados a todas as nações, começando de Jerusalém” (Lucas 24.46-47).

É interessante que, diante deste “Templo”, o centurião romano reconheça a manifestação da justiça. É certo que suas palavras indicam especificamente que Jesus não tinha culpa que merecesse aquele castigo. Mas não dá para deixar de pensar que Jesus é o novo Templo, através do qual judeus e não-judeus podem encontrar a justiça de Deus, por meio da conversão e do perdão.

Podemos lembrar aqui de Paulo. Ele transmitiu aos coríntios a fé que havia recebido: “[...] Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras [...]” (1Coríntios 15.3).[8]

CONCLUSÃO

Ao participar da Ceia, por meio do texto lido no Evangelho de Lucas, podemos refletir sobre a morte de Jesus como o culto perfeito: Jesus entrega a sua vida como oferta única de expiação e Deus manifesta-se para reconciliar o ser humano consigo. Por isso, Jesus é o novo Templo, onde se pode encontrar Deus através da conversão e do perdão.

Notas:

[1] JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero, p. 32.

[2] PADRE ZEZINHO. Por um pedaço de pão. Disponível em http://www.letras.com.br/padre-zezinho/por-um-pedaco-de-pao. Acesso em 16/08/2009.

[3] A Bíblia de Jerusalém, p. 1803, nota “l” (relativa a Ageu 2.9); cf. a nota "t", na página 1989, relativa a João 2.20: "A reconstrução do Templo havia sido iniciada no ano 19 antes de nossa era, o que situa a cena na Páscoa do ano 28."

[4] Almeida Revista e Atualizada.

[5] Almeida Revista e Corrigida.

[6] http://www.candlelightingtimes.org/shabbos/br.htm. Acesso em 15/08/2009.

[7] Almeida Revista e Corrigida. A Almeida Revista e Atualizada traz “santuário”.

[8] Almeida Revista e Atualizada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A Bíblia: Almeida Revista e Atualizada no Brasil. 2.ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

A Bíblia: Almeida Revista e Corrigida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1985. 2366 p.

JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Trad. Ilson Kayser et. alii. São Leopoldo: Sinodal, 2001. 188 p.

http://www.bible-architecture.info/4.The_8.gif. Acesso em 20/08/2009. Templo de Herodes.

http://www.candlelightingtimes.org/shabbos/br.htm. Acesso em 15/08/2009.

domingo, agosto 02, 2009

Homem de Deus?

No dia 22 de abril, minha tia Angélica mandou-me o recado que transcrevo abaixo:

Rubinho, seja sempre um homem de Deus. Você, pequenino, gostava de dizer: Bem-aventurado o varão que põe no Senhor a sua confiança. Pratique sempre essa verdade.

A citação é do Salmo 40.5(4) [cf. Jeremias 17.7].

Sabe o que é curioso? Eu não me lembro de ter dito isso. Nada fora do normal. Eu era uma criança. Todavia, essa "revelação" causou-me um certo impacto. Afinal, vai já muito tempo e eu mudei tanto...

Em minha ingenuidade infantil (quando para a gente tudo é simples), essas palavras deviam soar naturalmente, como uma verdade que não precisava ser demonstrada. Talvez eu nem mesmo me preocupasse com que esses dizeres viessem acompanhados de uma verificação posterior, a famosa "experiência de fé", cuja concretização deveria ser objeto de testemunho público. Na certa, "Bem-aventurado o varão que põe no Senhor a sua confiança" era tão tranquilo para mim quanto sair a brincar, que é o que eu provavelmente fui fazer logo após ter recitado o versículo para a minha tia.

É engraçado que eu fui crescendo e Deus se tornando algo cada vez mais difícil. Sim, eu conheço bastante (embora sempre insuficientemente) a Bíblia, já fiz jornadas de oração e acreditei em tantas coisas. Ouvi vários sermões, uns bons, outros ruins, porém que, geralmente, sinalizavam que continuamente faltava algo. Em mim, no mundo, na existência.

Aos poucos, também por meus estudos e observações pessoais, ia possuindo conteúdo de mais e segurança de menos. O que venho sabendo é de uma pequenez infinitesimal, porém Deus foi tornando-se uma crescente incógnita e a espiritualidade um quebra-cabeças. Deus se expressa através de uma única religião? Há destino? Por que as pessoas são boas "e" más? Como Deus pode permanecer impassível perante o sofrimento no universo? O ser humano dotado de consciência e liberdade não é um risco demasiadamente alto? A transitoriedade decorrente da contínua transformação da matéria não dá a impressão de que, por mais elevado que seja o grau de nossa inserção no mundo, somos apenas como plástico, papel, restos orgânicos ou latinhas de refrigerante dentro de uma astronômica usina de reciclagem?

Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre.
Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir.
O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol.

(Eclesiastes 1.4, 8-9) [1]

É evidente a falta de algo. "É o pecado original que faz isso", dirão alguns. Acontece que justamente é o pecado, o mal, a decrepitude, a impotência que parece representarem o que há de mais "original" em nós. Como começou tudo isso? Arriscaria que, enquanto intenção, começou, tragicamente, com o surgimento da faculdade da consciência.

A consciência, todavia, anda inquieta com sua própria condição, uma vez que a bondade e a felicidade ela também é capaz de experimentar e expressar. Mas por que tais coisas não são perenes? Por que hoje somos benevolência e amanhã malevolência?

Aconselhou-me minha tia a ser sempre um homem de Deus. Se intuo que Deus criou o mundo, estou incluído nessa criação e, por isso, não há como deixar de ser um homem "de Deus". Por outro lado, sempre um "homem de Deus" tal quais as exigências da fé judaico-cristã sinto que há de envolver continuamente a devoção mas também a crítica dos pressupostos de minha crença: Deus revelou-se ao ser humano porque este, sendo pecador, precisa ser salvo.

A revelação (que não é exclusividade do Judaísmo e do Cristianismo) é um fenômeno, isto é, dá-se pela percepção humana da realidade do sagrado. Desnecessário dizer que a ideia de que a pessoa apenas percebe porque Deus tomou a iniciativa já está incluída na compreensão mesma dessa experiência. Em outras palavras, integra o acontecimento da revelação (que é sempre biopsicoespiritual) já tornado "discurso", discurso da fé. E como a fé é atividade humana e se traduz em linguagem, será historicamente condicionada por esta linguagem, visto que toda a interação do ser humano com o mundo é linguagem.

As "fés" testemunhadas pelos livros canônicos da Bíblia são quadros históricos somente possíveis e compreensíveis naqueles momentos históricos em que se produziram os testemunhos. As linguagens bíblicas são linguagens próprias daquelas circunstâncias históricas. Algo dessas expressões filosófico-linguísticas tornou-se padrão "técnico" de discurso das espiritualidades decorrentes ao longo dos séculos: Deus Pai; Cristo; céu e terra; Reinado de Deus; corpo, alma e espírito; predestinação; Espírito Santo; diabo; anjos; Escrituras; etc.

De que modo compreender, à luz do conhecimento cada vez mais extenso sobre a natureza (e "revelador" de nosso insistente desconhecimento) e da pluralidade de formas e cosmovisões filosóficas e religiosas, a proposta cristã que se estabeleceu no Ocidente? E que dizer dos cristianismos que se perderam (gnósticos, ebionitas, docetas, etc.)? Os conceitos comunicados pelas expressões filosófico-linguísticas supracitadas são capazes de dar conta das questões colocadas pelo mundo moderno? Dizia Drummond que, por trás da porta, a Verdade se compunha de metades diferentes umas das outras, por cujas belezas só era possível optar. [2] Que espiritualidade(s) responderá(ão) a um mundo (parece) irrevogavelmente percebido como um conjunto de "meias verdades" não coincidentes?

Segundo a Bíblia Hebraica, o homem de Deus que viera de Judá a Betel, visto que falhara, o leão encontrou e matou (1Reis 13.21-24). Se toda linguagem é metafórica, já que estabelece a "comparação" como mecanismo de compreensão da(s) realidade(s), tal narrativa comporta alguma razoabilidade dentro da era da física quântica, da astronomia, das pesquisas da evolução das espécies, da engenharia genética, do "livre-arbítrio" individual e da diversidade de pensamentos? Nas esquinas do século XXI, o homem de Deus e o leão ainda se encontram, mesmo que pacificamente?

Notas:

[1] Almeida Revista e Atualizada.

[2] http://www.memoriaviva.com.br/drummond/poema072.htm

terça-feira, julho 28, 2009

As brumas

Noite sob quase zero grau.
Brumas paridas do fôlego
Amadurecem num ritmo trôpego,
Bruxuleio infinitesimal.

Era o mergulho no infinito!
Felicidade e perplexidade!
Efemeridade e mortalidade.
Soçobrou, soçobrou o mito...

A geada, voraz, amanheceu
E não deixou ervas nenhumas!
Sob o pensamento, o dogma feneceu...

Sob o sol, borbulharam espumas,
Bolhinhas multicores como um camafeu,
Lindas e fugazes como as brumas.

Novo Hamburgo, RS

domingo, julho 19, 2009

A Bíblia: novelas, sagas e milagres

A Bíblia é literatura. Seus textos testemunham com que modos variados os antigos hebreus desenvolviam a arte escrita para interpretar as suas sociedades e teologias. Se a Bíblia é um conjunto de peças literárias, naturalmente se pode estudar os gêneros de literatura que elas representam. Detendo-me nos gêneros narrativos, pretendo falar aqui a respeito de três deles, os quais podem ser observados no Antigo Testamento: a novela, a saga e a história de milagre.

A NOVELA descreve vários acontecimentos ligados à vida de um personagem, assim como os seus sentimentos e as suas reações. Geralmente, o personagem está destinado a preservar a vida de um clã ou grupo de famílias (p. ex. a novela de José). Também pode ser que a Providência valha-se do protagonista para evitar o extermínio de um povo (p. ex. a novela de Ester). Na novela de Rute, a protagonista é introduzida na linhagem de um personagem ilustre da história de Israel, o rei Davi (Rute 4.13-22).

Tomo como exemplo a história de José (Gênesis 37; 39 – 50) para ilustrar os três tempos nos quais se desenrola a trama da novela: A) INÍCIO (uma situação de conflito) – José é odiado e vendido por seus irmãos (37); B) MEIO (o conflito se complica cada vez mais) – José é caluniado e preso (39 – 40); C) FIM (a resolução do conflito) – José se torna governador do Egito, reconcilia-se com seus irmãos e reencontra Jacó, seu pai (41 – 50).

A SAGA quer explicar alguma situação no presente a partir de um acontecimento do passado. A história da transgressão dos primeiros seres humanos (Gênesis 3) esclarece o porquê da inimizade entre a serpente e o homem (versículo 15), da maneira como a serpente se locomove (versículo 14), das dores de parto da mulher (versículo 16), da canseira do trabalho do ser humano (versículos 17-19), etc. Já a narrativa da construção da torre de Babel quer desvendar a origem da cidade de Babilônia e do fenômeno da multiplicidade das línguas dos habitantes da região do Mediterrâneo e do Crescente Fértil (Gênesis 11.1-9). A história da prova de Abraão (Gn 22) mostra por que os israelita resgatam seus filhos primogênitos ao invés de sacrificá-los à divindade.

A HISTÓRIA DE MILAGRE tem o propósito de incitar ou fortalecer a fé. No centro da narrativa pode estar um profeta (p. ex. Elias), um mártir (p. ex. Os amigos de Daniel), um local sagrado (p. ex. Betel) ou um rito (p. ex. a circuncisão). Na história de 1Reis 17.7-16, a palavra de Iavé por meio de Elias tornou-se acontecimento real: o óleo e a farinha da viúva de Sarepta foram multiplicados. Os três amigos de Daniel escaparam ilesos das chamas da fornalha onde tinham sido lançados por terem se recusado a curvar-se diante da estátua de ouro de Nabucodonosor (Dn 3). Jacó consagrou uma estela que erigira em certo lugar como uma casa de Deus (heb. Beit-El – Betel), porquanto ali sonhara com uma escada em que os mensageiros celestes de Deus subiam e desciam (Gn 28.10-22). A narrativa quer explicar por que Betel era considerado um lugar sagrado. Em Gênesis 17, o rito da circuncisão foi instituído por ocasião de uma aparição de Iavé a Abraão.

Há outros gêneros literários narrativos no Antigo Testamento. Os três expostos – a novela, a saga e a história de milagre – podem ajudar o leitor a identificar e compreender trechos bíblicos nos quais sejam identificadas as mesmas características.

sexta-feira, julho 10, 2009

A Bíblia: o geral ilumina o particular.

No Novo Testamento grego encontramos formas do verbo hermeneuein, cujo significado é precisamente “interpretar”, “explicar”. Veja-se, por exemplo, Lc 24.27, em que o autor diz que Jesus “explicava” aos discípulos que estavam a caminho da aldeia de Emaús aquilo que dizia respeito a ele nas Escrituras. O Jesus lucano confere um novo sentido às palavras do Antigo Testamento e assim o interpreta tomando como chaves de compreensão a sua vida, a sua morte e a sua ressurreição (v. 26).

Hermeneuein dá origem à palavra “hermenêutica” em nossa língua portuguesa. Ela faz parte do vocabulário de algumas áreas do conhecimento, a saber, a Teologia, a Filosofia, a Linguística, a Literatura e o Direito. Designa a arte e a ciência da interpretação de textos. Hermenêutica é arte porque implica o exercício da criatividade do(a) intérprete no manejo do instrumental técnico para alcançar uma compreensão do que se lê. Hermenêutica é ciência porque opera a busca pelos sentidos de um texto mediante a utilização de metodologias científicas de análise. Não há espaço para fazer uma exposição das perspectivas hermenêuticas que têm sido sugeridas atualmente e a partir das quais se pretende ler a Bíblia e “escutar” o que ela tem a dizer para o mundo de hoje. Embora considere fundamental que você, leitor(a), busque conhecer tais propostas, não é o meu objetivo ocupar-me delas neste artigo. O que quero é apenas pensar rapidamente sobre um aspecto importante no que se refere ao entendimento do conteúdo da Bíblia.

Os livros bíblicos foram escritos com finalidades específicas. Isso significa que os diversos textos que os compõem foram elaborados e organizados de modo a favorecer a compreensão das intenções com que os seus autores os produziram e deram forma a eles. Não se pode, portanto, desviar da tarefa de ler e compreender bem TODO UM LIVRO BÍBLICO caso se queira entender suas partes menores. É necessário prestar bastante atenção às expressões que orientam diretamente para o objetivo do livro, bem como às frases ou ideias que se repetem.

No livro do Gênesis, por exemplo, é comum deparar-se repetidas vezes com as expressões “eis as origens de”, “este é o livro da genealogia de”, “esta é a história de”. Por meio delas, podemos supor que esse livro quer esclarecer aspectos ligados ao estabelecimento de determinadas realidades, ao surgimento de certa variedade de nações ou aos registros “biográficos” a respeito de indivíduos específicos. Deve-se sempre lembrar que tais informações querem principalmente fundamentar conceitos sociais e religiosos familiares aos leitores que pela primeira vez receberam o livro. Observe como a narrativa da criação de Gênesis 1.1 – 2.4a confere uma razão teológica para a organização social e religiosa apresentada em Êxodo 20.8-11 (cf. Dt 5.12-15) e 31.12-17. Trabalhar seis dias e descansar no sétimo seria como reviver o próprio acontecimento da criação: “Eis as origens do céu e da terra quando foram criados” (Gn 2.4a).

O propósito do Evangelho de João está exposto de forma bem clara no final do livro: “Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão escritos neste livro; estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.30-31). Se tiver um olhar atento, o(a) leitor(a) perceberá ao longo de toda a obra este convite a crer em Cristo como o enviado de Deus que dá a vida eterna àqueles que aderem à sua mensagem.

O livro dos Atos dos apóstolos já de início elucida a proposta teológica e o itinerário narrativo que irão condicionar a estrutura do conteúdo apresentado: “Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (At 1.8). O livro mostra como o dom do Espírito Santo tornou judeus (cap. 2), samaritanos (cap. 8), romanos (cap. 10), os discípulos de João em Éfeso (cap. 18) unidos sob a fé em Cristo. Apresenta também o crescimento do evangelho começando em Jerusalém (cap. 1 – 7), atingindo outras regiões da Judéia e passando pela Samaria (cap. 8 – 12), estendendo-se até à Ásia menor (cap. 13 – 20) e chegando em Roma (cap. 21 – 28).

Para compreender, portanto, uma passagem bíblica, deve-se examiná-la à luz do contexto do livro ao qual ela pertence.

quinta-feira, julho 09, 2009

Espiritualidade?

O texto a seguir, de 08 de setembro de 2008, é uma contribuição para uma "rodada" do café teológico virtual do qual participaram: Carla Saueressig, Marlova Schneider, Dionata Oliveira, Vanderlei Schneider, Renato Jover, Ruben Marcelino, Marcos Romão Vichi e Israel. Publicação na íntegra.

Olá para todos! A iniciativa da Carla de começar esse café teológico merece ser parabenizada, já que esse diálogo, mesmo que ao redor de uma mesa virtual (por enquanto), pode aproximar os participantes, os quais terão acesso a diversas perspectivas sobre os mais variados assuntos relacionados à espiritualidade.

Li todas as respostas dadas até aqui e notei que, seguindo o fio da mensagem da Carla, o amor e o respeito à diferença receberam o principal destaque. Comentários sobre a prática pessoal do cristianismo também ocuparam lugar na fala dos interlocutores.

O que é a espiritualidade? Ainda estou tentando descobrir. Será amar e respeitar o próximo? Ou orientar a própria a vida a partir de (e em direção a) um referencial estabelecido a priori, através de um comportamento regido ritualística e disciplinadamente pela observância de regras? Ou as duas coisas? Ou nem isso nem aquilo?.

Não há dúvida de que exemplos como o desse rapaz com o qual a Carla conversou podem impressionar. Afinal, religioso ou não, o ser humano parece ter uma necessidade intrínseca de ordenar a realidade à sua volta, de modo a vencer o caos externo com o qual se defronta e superar a aparente falta de sentido incontornavelmente percebida na luta pela sobrevivência e na morte. Desse modo, na sua relação com a realidade externa, observa aquilo que se repete, demarcando ocasiões específicas pelas quais consiga estruturar a sua trajetória no mundo. Do que acontece em seu próprio corpo (e notando outros corpos) estabelece conclusões a respeito da vida e de como e por que ela vem a ser. Ao ordenar o mundo pela observação e considerar que há corpos dos quais a vida surge (isto é, tem um começo), talvez tenha chegado a raciocinar que todas as coisas teriam a sua origem última em uma força ordenadora, viva e consciente. A vida social, conforme evolui e se especializa, empresta as imagens que vão tornando essa força cada vez mais parecida com as estruturas de poder criadas pelo homem: pai, rei, sacerdote, educador, etc. No entanto, diferente dos limites da condição transitória humana, essa força controla permanentemente a natureza, a vida de pequenos grupos, o destino de grandes impérios e, por fim, a história humana, compreendida (assim como a vida individual) entre uma origem e um fim.

Essas estruturas de poder não apenas fornecem as tintas com as quais se pinta esse poder transcendental (que pode se fragmentar em forças menores, conforme a cultura: ancestrais falecidos que ainda se comunicam, animais fantásticos, seres celestes, fantasmas, demônios e, mais modernamente, alienígenas), mas também são fundamentadas por ele: costumes, referenciais éticos e legislações elaborados pelas próprias sociedades são atribuídos originalmente à força primeva que os impõe à vontade dos indivíduos.

Não é de estranhar que culturas como a islâmica, tão distinta do secularismo ocidental, reverenciem avidamente tal poder, visto que é absolutamente necessário para manter coesa a própria organização das sociedades até as suas microestruturas. Admiramos o temor e a devoção desses irmãos nossos de humanidade e vemos que também o cristianismo compartilha dessa atitude em alguns contextos. Mas pergunto mais especificamente: isso é espiritualidade legítima? Em que medida não estamos presenciando a divindade como espelho da cultura? A divindade está além da cultura ou sempre esteve reduzida a ela? Alguém poderá dizer: mas a consciência de um deus sempre existiu. E eu, se me permitem, pergunto: qual deus? Mudam as culturas, mudam os deuses. Ainda um supostamente único deus é representado de maneiras distintas, conforme variam os grupos que o veneram. Se as culturas se tornam hegemônicas, o(s) seu(s) deus(es) do mesmo modo.

Será que há algo inscrito em nossa constituição humana desde sempre que poderia ser associado a um deus? Diria (provisoriamente) que talvez espiritualidade seja nada mais que relação com (e em) o mundo. Os deuses e as deusas, criá-los-íamos para representar essa relação, uma relação com o eu e com o outro que está diante de nós, presente em presença ou ausência.

A espiritualidade é o quê?

terça-feira, junho 23, 2009

SONETO PARA O DIA DAS MÃES

Frio universo de astros oscilantes,
Tua magnífica e surda amplitude
É aquecida ao gritarem os infantes
A quem os dá à luz, sagrada virtude.

Aquecida de sentido, amor, graça
Do Deus do céu, Santo edificador;
Ele, cuja resistente argamassa
É o colo da mãe, seio educador.

Por misericórdia ao mundo mandou
O Salvador, nascido de mulher;
E o Rei da Vida Maria amamentou.

Assim, Mamãe, por me amar e acolher
E do mal o meu caráter tolher
Louvo-a – Oh, tão Querida – por quem sou.

terça-feira, abril 28, 2009

PRECE NUM TEMPLO DE TRIPAS

Jonas 2. 1-11 (1.17 - 2.10)

2.1 (1.17)
[Aa] E então o SENHOR separou um peixe grande
[Ab] para engolir Jonas.
[Ba] Assim, Jonas ficou nas tripas do peixe
[Bb] três dias e três noites.


2.2 (2.1)
[Aa] Então Jonas suplicou
[Ab] ao SENHOR, seu Deus,
[ B ] das tripas do peixe.


2.3 (2.2)

[A] Ele disse:
Desde a minha angústia gritei
para o SENHOR e ele me respondeu.


[B] Desde a barriga do Xeol (o lugar dos mortos) gritei por socorro;
tu ouviste a minha voz.



2.4 (2.3)
[Aa] Então ele me lançou na profundeza, no coração dos mares,
[Ab] e um rio me cercou.

[ B ] Todas as tuas enormes ondas e todos os teus vagalhões
passaram sobre mim.



2.5 (2.4)
[Aa] Aí eu disse:

[Ab] Fui expulso
para longe de teus olhos.

[Ba] Como voltarei a olhar
[Bb] para o templo de tua santidade?


2.6 (2.5)
[Aa] Águas me envolveram até a garganta,
[Ab] um abismo me cercou;
[ B ] uma alga se enroscou em minha cabeça.


2.7 (2.6)
[Aa] Desci aos alicerces das montanhas,

[Ab] à terra
cujas trancas permaneciam atrás de mim
continuamente.


[ B ] Mas tu levantaste a minha vida da cova,
SENHOR, meu Deus.



2.8 (2.7)
[Aa] Ao desfalecer meu fôlego sobre mim,
[Ab] lembrei-me do SENHOR.
[Ba] Então, minha súplica chegou a ti,
[Bb] ao templo de tua santidade.


2.9 (2.8)
[A] Os que se apegam a bafejos de nada
[B] abandonam-se ao favor deles.


2.10 (2.9)
[Aa] Mas eu, com voz de gratidão,
te oferecerei um sacrifício;


[Ab] pagarei o voto que fiz.

[ B ] Ao SENHOR, a salvação.


2.11 (2.10)

[A] Então o SENHOR falou ao peixe
[B] e ele vomitou Jonas na terra seca.

* Tradução a partir da Biblia Hebraica Stuttgartensia





sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Incidente em Antares: política brasileira em perspectiva fantástica gauchesca

VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. 464 p.

A obra está dividida em duas partes, as quais, embora haja continuidade entre elas, diferem no foco. A primeira parte inscreve a cidade fictícia de Antares no cenário político brasileiro desde a primeira metade do século XIX até a década de 1960; a segunda narra o incidente propriamente dito que dá o título à obra.

“Antares”, a primeira parte, com 79 capítulos, prepara o leitor para a narração do incidente na segunda parte. O narrador expõe deste modo o plano de obra:

Melhor será contar primeiro, de maneira tão sucinta e imparcial quanto possível, a história de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma idéia mais clara do palco, do cenário e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaria, desse drama talvez inédito nos anais da espécie humana. (Capítulo 1, p. 10)

É nítida a ironia do fragmento, já que a comparsaria é o elemento fundamental (e nada inédito) de articulação da história, pois dá forma concreta às manobras que vinculam personalidades antarenses de prestígio aos movimentos da política e da economia nacional e sustenta a farsa orquestrada por essas mesmas personalidades a fim de encobrir-lhes as imoralidades denunciadas pelo incidente.

O leitor é inicialmente apresentado às duas principais famílias de Antares, os Vacarianos e os Campolargos, cuja rixa mortal marca a história da cidade até meados da década de 1920, época em que Getúlio Vargas, então deputado federal do Partido Republicano pelo Estado do Rio Grande do Sul, propõe a paz entre elas.

Comunidade da região que abriga os Sete Povos das Missões (São Francisco de Borja, São Nicolau, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Miguel Arcanjo, São Luís Gonzaga e Santo Ângelo Custódio), a noroeste do Rio Grande do Sul e próxima à fronteira com a Argentina, Antares – outrora Povinho da Caveira – era “um lugarejo pertencente à comarca de São Borja, [...] formado por uma escassa dúzia de ranchos pobres, perto da barranca do rio” (Capítulo 2, p. 11). Segundo o narrador, a descrição é tomada da obra de um naturalista francês, Gaston Gontran d’Auberville, que cruza o rio Uruguai e chega a esse povoado entre 1830 e 1831. O cientista narra o seu encontro com o proprietário das terras, Francisco Vacariano. Em uma noite, quando o francês lhe mostra a estrela Antares, “Chico” Vacariano – para quem a palavra significaria “lugar onde existem muitas antas” – considera-o um “Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da Caveira” (Capítulo 3, p. 14). Outro documento histórico, fornecido pelo narrador, é uma carta escrita em 1832 por um missionário católico argentino, Padre Juan Bautista Otero, o qual relata ao seu superior como obtivera permissão do dono das terras de Povinho da Caveira, Francisco Bacariano, para fazer casamentos e batizados.

Após situar Francisco Vacariano no contexto da Guerra dos Farrapos (1835 – 1845), em que fazia um jogo duplo entre revolucionários republicanos e tropas imperiais que favorecesse a manutenção de suas terras, e da elevação do Povinho da Caveira a vila em 1853, quando recebe oficialmente o nome de Antares, o narrador conta, no capítulo 6, a origem de sua rivalidade com Anacleto Campolargo, criador de gado que decide comprar terras nas proximidades por volta de 1860. Desse ponto em diante, o leitor é conduzido pelos embates sangrentos entre as duas famílias que atravessam momentos políticos importantes da História do Brasil – a Guerra do Paraguai (1864 – 1870), a assinatura da Lei Áurea (1888), a proclamação da República (1889) e a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893 – 1895). As inovações científicas do final do século XIX e princípio do XX – as estradas de ferro, o telefone, a luz elétrica e o automóvel – também servirão de pretexto para as rusgas entre os Vacarianos e os Campolargos.

As boas relações entre os representantes dos dois principais clãs de Antares, após a intervenção do “Homem de São Borja”, ocuparão a maior extensão da primeira parte da obra (do capítulo 24 ao 79), concentradas principalmente em torno do patriarca dos Vacarianos, Tibério, e da matrona dos Campolargos, Quitéria ou Dona Quita. Tanto um como a outra surgem como enérgicos analistas (e ativistas) políticos entre as turbulentas décadas de 1930 e 1960. É importante destacar a perícia com que Veríssimo, ao mesmo tempo que informa o leitor dos eventos marcantes da política brasileira no período – a Era Vargas (1930 – 1945), o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956 – 1961) e a administração, suspeita de comunismo, de Jango Goulart (1961 – 1964) –, tempera a narrativa com as reações das personagens, preocupadas sempre com a defesa de seus interesses de propriedade, perante os rumos que tomava a história nacional. Há tiradas de bastante humor, como esta:

Quando chegou a Antares a notícia de que as Forças Armadas, sob o comando do ministro da Guerra, tinham acabado de dar um golpe de Estado, Tibério Vacariano exultou, saiu para a rua, fez um comício mirim na praça, e bravateou durante o chimarrão das dez. O país estava salvo!

Sua alegria, porém, foi de curta duração, pois em breve se esclareceu que a finalidade daquele movimento militar fora a de garantir a posse dos candidatos eleitos [Juscelino Kubitschek como presidente da República e João Goulart, seu vice]. Tratava-se, em suma – alegavam os seus autores –, dum “golpe preventivo”.

Ao saber disso, Tibério soltou um palavrão, entrou no seu jipe e tocou para a estância, onde passou o verão inteiro no convívio das vacas que – segundo ele próprio agora dizia – lhe mereciam mais confiança que os políticos e os generais. (Capítulo 48, p. 97)


O capítulo 59 encerra com o fracasso de uma experiência parlamentar de 16 meses no Brasil e o retorno dos poderes presidenciais às mãos de Jango. O capítulo 60 introduz o episódio final da primeira parte, que dará ocasião ao narrador para responder a seguinte pergunta: “Que tipo de cidade era Antares e que espécie de gente a habitava e governava ao tempo em que ocorreu o macabro incidente que em breve se vai narrar?” (p. 124) Trata-se de uma pesquisa sociológica sobre o município gaúcho realizada pelo Prof. Martim Francisco Terra, da Universidade do Rio Grande do Sul, e um grupo de estudantes, entre os quais estava Xisto, neto de Tibério Vacariano.

Em diálogo com o Prof. Terra sobre a reação desfavorável dos antarenses ao resultado do estudo, o livro “Anatomia de uma cidade gaúcha de fronteira”, Xisto se refere a um diário que seu mestre mantivera durante as atividades de campo na cidade, de cujos determinados trechos o narrador se serve, já que “[...] menciona ou comenta pessoas e lugares que viriam a ser envolvidos no controvertido 'incidente' de 13 de dezembro de 1963 [...]” (Capítulo 69, p. 146): Tibério Vacariano e Quitéria Campolargo, esta última presidente dos Legionários da Cruz, uma sociedade organizada para lutar contra o “esquerdismo” de Jango e Leonel Brizola e em prol da religião e da moral; a Praça da República e a Rua Voluntários da Pátria; os médicos rivais, Dr. Lázaro Bertioga e Dr. Erwin Falkenburg; o major Vivaldino Brazão, prefeito de Antares e “orquidófilo” amador; Lucas Faia (ou Lucas Lesma), diretor do jornal local, A Verdade, e seus acessores: o Ferreirinha e o Vitório Natal, o colunista social; Dominique, a mulata haitiana que “recebia santo”, mulher do gerente da Cia. Franco-Brasileira de Lãs, M. Duplessis; o maestro fracassado Menandro Olinda; o Padre Gerôncio, vigário da igreja matriz; o Prof. Libindo Olivares, diretor do Ginásio Nacional, que alegava manter correspondência com celebridades mundiais – Jean-Paul Sartre, João XXIII, François Mauriac e Marcel Proust – e recebia em sua casa quase todas as noites os seus “efebos” (seu nome sugere um divertido trocadilho com a palavra “libido”); e o Padre Pedro-Paulo, capelão da Vila Operária e adepto de um “[...] cristianismo militante e não apenas teórico, 'simpatizante'” (Capítulo 79, p. 183), desse modo, talvez, uma figura que aludisse à Teologia da Libertação, tipicamente latino-americana, que começava a florescer nesse período.

A segunda parte da obra, composta em 102 capítulos, tem início com a greve geral dos trabalhadores da indústria, do comércio, dos transportes e da energia elétrica em 11 de dezembro. Nesse mesma data, seis pessoas morrem, entre elas Dona Quitéria, vítima de um ataque cardíaco. Saindo do velório da matriarca dos Campolargos, o Dr. Cícero Branco, advogado, tomba em decorrência de um derrame cerebral.

Os grevistas, tendo à frente o líder operário Geminiano Ramos, interditam o cemitério local e impedem o sepultamento dos sete mortos, cujos caixões com seus corpos são deixados junto ao muro. Na noite de quinta para sexta-feira, os defuntos saem de seus esquifes e deliberam entre si descer até a Praça da República e exigir o enterro, sob ameaça de permanecer apodrecendo no coreto. Na manhã da sexta-feira 13, Dona Quitéria Campolargo, o Dr. Cícero Branco e os outros cinco mortos – o sapateiro “Barcelona”, o maestro Menandro Olinda, o jovem João Paz, a prostituta Erotildes e o ébrio “Pudim de Cachaça” – seguem para Antares e, entre sustos, visitas a pessoas conhecidas, advertências e intimações, defrontam-se com os representantes do poder público e rural e o povo da cidade ao meio-dia.

Percebendo que sua reivindicação não será atendida, os cadáveres, cujo aspecto nauseante o narrador vem descrevendo com uma crueza de impressionar, vociferam insultos e acusações contra os seus interlocutores – hipocrisia, peculato, abuso de poder, tortura, assassinato, adultério, fraude de laudo médico, pederastia –, provocando em alguns comoção e mal-estar, além de brigas e separações de vários casais.

Uma infestação de ratos e a suspeita de contaminação da água causam ainda mais pânico na população, carregando nas cores apocalípticas o pano de fundo para a lavagem de roupa suja que as famílias começam a fazer.

Ao raiar do sábado, Tranqüilino de Almeida, chefe dos guardas aduaneiros, e um grupo de quinze ou vinte homens atacam cadáveres e urubus a tiros, garrafas, pedaços de madeiras e tijolos. Acatando, então, uma proposta do Dr. Cícero Branco, os mortos voltam aos seus caixões. A assembléia geral do sindicato dos industriários aprovara na noite anterior suspender o cerco ao cemitério, razão pela qual os sepultamentos puderam ser feitos.

O livro termina com as autoridades de Antares desmentindo o ocorrido perante equipes da imprensa de Porto Alegre que vão até lá investigar e promovendo eventos para restabelecer a honra dos cidadãos que tiveram a sua reputação manchada pelas denúncias dos defuntos. A cena final da criança tentando ler a palavra “Liberdade”, um “palavrão” pichado num muro por um estudante, que os empregados da Prefeitura se apressavam para apagar, sugere que, ao contrário dos sete mortos, a podridão da impunidade insistia em permanecer insepulta em Antares.

“Incidente em Antares” demonstra a maestria com que Erico Verissimo, gaúcho de Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul, domina não só a arte de escrever, mas também uma variedade de campos de conhecimento, desde a História do Brasil e do Mundo, a literatura da Bíblia e a fascinante tradição cultural, bem como o imaginário mitológico, do Rio Grande do Sul - menciona-se, por exemplo, no capítulo 6, a lenda da Salamanca do Jarau.* Desse modo, torna-se plausível considerar a obra, publicada em 1971, uma representante do realismo fantástico, tendência literária surgida no século XX como forma de reação às ditaduras implantadas em países da América Latina durante as décadas de 1960 e 1970. É uma leitura agradável e instrutiva, pela qual a Abril Cultural deve ser parabenizada ao fornecer aos leitores essa publicação.

Ruben Marcelino Bento da Silva
*Leia a lenda da Salamanca do Jarau:

quarta-feira, janeiro 28, 2009

Molequinha: amo você!


Minha Molequinha morreu hoje. Lamento não ter podido vê-la. Lamento a brevidade da vida. Embora grato por ter sido um animalzinho tão alegre e especial, que ofereceu à minha família tantas felicidades, e havermos recebido a honra de vê-la nascer e cuidar dela, lamento o fato de nossa gatinha não mais viver. Só posso me calar e aceitar.

Não sei se há vida após a morte para os animais. Se há, o Criador deve ter ficado muito feliz porque agora poderá brincar com a Molequinha. E há de sorrir ainda mais quando chegar a hora de brincarmos todos juntos: Molequinha, minha família e o SENHOR. Eu queria tanto acreditar! Eu queria tanto encontrar a minha Molequinha de novo um dia!

"Então louvei eu a alegria, porquanto para o homem nada há melhor debaixo do sol do que alegrar-se" (Eclesiastes 8.15)*
Notícia enviada por minha mãe sobre a Molequinha:
Ruben, a Nên morreu ontem às 18h30. Enviei duas msgs p o celular da Carla, vc viu? Hoje o seu pai levou-a à Mangueira para ser cremada. Chorei muito e estou morrendo de saudades dela, apesar de saber que ela agora não sofre mais. Até o final ela queria ficar comigo; nunca perdeu a fome, só não conseguia comer muito. Ontem sua última refeição foi um danoninho (é claro que comeu só um pouquinho!). Logo depois começou a passar mal e morreu na minha mão. A Brenda foi vê-la assim que ela morreu e ficou com uma cara de espanto. Acho que eles sabem o que está acontecendo.
* Almeida Corrigida e Revisada Fiel. Apud. http://www.bibliaonline.com.br/

terça-feira, janeiro 27, 2009

Da morte

Recebo ultimamente notícias de que uma gatinha que nasceu na casa de minha família está perto de morrer. Ela viveu cerca de 17 anos conosco, mas já vai partindo... Para alguns, isso eventualmente não terá a menor importância. Afinal de contas, diriam, é só uma gata. Isso sem contar que o gato há muito é bastante estigmatizado: dá azar, está relacionado à feitiçaria, não gosta de pessoas e outras idiotices do gênero. Todavia, quando se vive muitos anos com um animal de estimação, pode-se sofrer a sua morte tanto quanto a de um parente. Os gatos também amam. O seu amor e presença fazem falta para aqueles que com eles conviveram.

Agora ela vai embora e eu fico desconcertado. Novamente, a morte se impõe, tão certa quanto a vida. E como a gente não pede para nascer, também não pode evitar morrer. Só que, enquanto a vida é uma possibilidade (eu, como todo mundo, nasci por vontade alheia e, pela mesma vontade, poderia não ter nascido), a morte é um evento indubitável. Para morrer, basta estar vivo, dizia a minha avó Lucy, Érico Veríssimo e Machado de Assis. E os três já foram...

Por que a gente tem que morrer? No âmbito da biologia, a morte é perfeitamente natural e necessária para a sobrevivência das espécies e a manutenção do equilíbrio ambiental. No campo da física, ela é estabelecida pelas leis que regem a transformação da matéria. Na exegese bíblica (e aqui há muita discordância), ela pode ser o salário do pecado, mas também uma condição que acompanha o homem desde o seu surgimento. Nos mitos da criação e da trangressão em Gênesis (2 e 3), morrer não parece tanto a conseqüência de uma ação moral que provocou a decadência de seres outrora imortais e perfeitos, porém a pena capital para a desobediência ao mandamento do SENHOR Deus, uma antecipação de algo que naturalmente viria a acontecer, semelhante à pena de morte aplicada por alguns países a certos condenados pela justiça. Não acredito que um dia humanos, animais e plantas foram imortais. O texto sugeriria, na minha opinião, que morrer faz parte da vida desde que o mundo é mundo. O mais importante, contudo: nossas ações podem apressar a nossa morte e, mais do que numa morte por inconseqüência, Deus estaria interessado em que os seres humanos vivam e promovam a vida. Do contrário, não teria deixado de aplicar a pena capital, poupando o homem e Eva.

Aqui no Sul do Brasil, venho tendo a oportunidade de visitar alguns cemitérios. Eu já fazia isso em minha infância e adolescência lá em Rio Pomba, acompanhado de meu primo Marcos. Recentemente, acompanhei a Carla e o pastor de sua comunidade em um sepultamento num local parecido com o Jardim da Saudade no Rio. Voltei lá com ela outro dia e observávamos as placas para marcar as sepulturas na terra, os nomes e as fotografias que expunham. Estivemos por duas vezes em um outro cemitério que fica no terreno atrás de um templo cristão católico. Após a primeira vez, que foi à noite, comentava com a Carla uma idéia que tive. É possível que o medo causado por esse ambiente em tantas pessoas, seja um temor de almas do outro mundo, seja um mal-estar sem muita explicação, tenha a sua origem na consciência de que a morte é um caminho do qual não há desvio. O cemitério nos provoca pavor porque ali se revela a nossa transitoriedade. Morremos sempre porque mudamos a todo tempo. E, um dia, o tempo deixará de existir para nós, visto que passaremos pela última mudança: de vivos para mortos. Os fantasmas nos dão calafrios porque não queremos sê-los, intangíveis, gélidos, solitários, sem rumo, sem mundo, sem vida... O Qohélet, entretanto, é categórico: "É para a sepultura que tu vais" (Eclesiastes 9.10).

Não sei por que temos que morrer. É claro que a expressão "ter que" é metafísica. Do ponto de vista natural, não se trata de um "ter que", porém de um "quando" e um "como". De qualquer modo, a questão ontológica permanece: por que ser e não-ser? Mais teologicamente (cristão): Por que o Criador criou seres que morrem? Por que a separação definitiva e o sofrimento decorrente dela? (Minha mãe acaba de me dizer, via MSN, que uma senhora conhecida nossa de muitos anos faleceu ontem) Por que a dor, a saudade, apenas a lembrança? Na certa, quando o Quarto Evangelho diz que Jesus chorou a morte do amigo Lázaro (João 11.35), não há ali um teatro. "Por que chorou se iria ressuscitá-lo", perguntaríamos. Acredito que a narrativa queira sugerir que o leitor enfrente o fato da morte com a esperança da fé. É possível que para o próprio Jesus a morte fosse mais concreta do que supomos e um verdadeiro desafio à sua mensagem da chegada do Reinado de Deus. De que modo ele procede então? Vive o luto e, solidário àqueles que choravam, assume a esperança de que o Pai trará de volta o querido. Não vou dizer que é fácil acreditar nisso (Marta que o diga!), mais difícil, talvez, seja se conformar com a morte.

Será que a saída é cultivar as boas lembranças dos momentos que passamos com aqueles que se foram? E aproveitar a vida enquanto ainda estamos entre as pessoas, e os animais, e as naturezas que amamos? E duvidar, perguntar, discutir, pensar, repensar?

Por que a morte?

Para Molequinha