"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

terça-feira, dezembro 12, 2006

Paralelismo concêntrico em Daniel 3.31 (4.1) – 4.34 (37).

(A) COMUNICADO DE NABUCODONOSOR AOS POVOS. LOUVOR AO DEUS ALTÍSSIMO: 3.31-33 (4.1-3).

1. Endereço do comunicado: "O rei Nabucodonosor, a todos os povos, nações e línguas que habitam sobre toda a terra: Que vossa paz se multiplique!" 3.31 (4.1)

2. Propósito do comunicado: Narrar os sinais e maravilhas que o Deus Altíssimo fez em seu favor. 3.32 (4.2)

3. Louvor do rei: O reino do Altíssimo é um reino eterno. 3.33 (4.3)

(B) A PROSPERIDADE DE NABUCODONOSOR. A NARRAÇÃO DO SONHO PERTURBADOR: 4.1-15 (4-18).

1. O acontecimento do sonho e o decreto do rei: Os magos, os adivinhos, os caldeus e os astrólogos são chamados à sua presença. Nenhum consegue dar a interpretação do sonho. 4.2-4 (5-7)

2. A apresentação de Daniel: Daniel, indicado "chefe dos magos", é posto em destaque como o portador do espírito dos deuses santos e conhecedor de segredos. 4.5-6 (8-9)

3. A narração do sonho a Daniel:

a) Uma grande árvore, no meio da terra, crescia garbosamente e seus frutos e folhagens forneciam a todos os seres vivos alimento e abrigo. 4.7-9 (10-12)

b) Um Vigilante, também chamado "um santo" e vindo do céu, ordena a derrubada da árvore, deixando na terra apenas o toco com as raízes. Nela, o coração seria mudado de coração de homem para coração de fera. Sobre ela passariam sete tempos (provavelmente anos). 4.10-13 (13-16)

c) O propósito da sentença é declarado: "(...) a fim de que todo ser vivo saiba que o Altíssimo é quem domina sobre o reino dos homens: ele o concede a quem lhe apraz e pode a ele exaltar o mais humilde entre os homens" (Cf. 4.22, 29 [25, 32]). 4.14 (17)

(C) DANIEL INTERPRETA O SONHO: 4.16-24 (19-27).

1. A grande árvore: Representava Nabucodonosor e o esplendor do seu reino. 4.17-19 (20-22)

2. As palavras do Vigilante: Nabucodonosor seria expulso para viver junto aos animais do campo durante sete tempos até que reconhecesse o domínio do Altíssimo sobre o reino dos homens. Após isso ele
seria reconduzido à realeza. 4.20-23 (23-26)

3. O apelo de Daniel: O rei deveria reparar os seus pecados pela prática da justiça e as suas iniqüidades usando de misericórdia para com os pobres. 4.24 (27)

(B') AS PALAVRAS ORGULHOSAS DE NABUCODONOSOR. O SONHO TORNA-SE REALIDADE: 4.25-30 (28-33).

1. As palavras de Nabucodonosor: Babilônia, a glória do rei. 4.27 (30)

2. Ultimato celeste ao rei: O reino ser-lhe-ia tirado. 4.28-20 (31-32)

3. Realização da sentença: Nabucodonosor é expulso de entre os homens e passa a viver no campo como um animal. 4.30 (33)

(A') NABUCODONOSOR RECUPERA A RAZÃO. LOUVOR AO DEUS ALTÍSSIMO: 4.31-34 (34-37).

1. Nabucodonosor recupera a razão: Bendiz o Altíssimo e reconhece o seu domínio sobre o exército dos céus e os habitantes da terra. 4.31-32 (34-35)

2. Nabucodonosor é reconduzido ao reino. 4.33 (36)

3. Louvor final: Nabucodonosor glorifica o Rei do
céu por suas obras. 4.34 (37)

sábado, dezembro 09, 2006

O livro de Daniel.

O livro de Daniel é o único livro apocalíptico da Bíblia Judaica e do Primeiro Testamento cristão. Estima-se que ele tenha surgido no século II a.C. Para situá-lo em seu contexto histórico é preciso começar do conquistador macedônio Alexandre, o Grande.

Alexandre pretendia libertar os gregos do domínio dos persas. Suas conquistas foram desde a Ásia menor até as fronteiras da Índia. Quando Alexandre morreu (na segunda metade do século IV a.C.), o seu império foi dividido entre os seus generais. Somente dois deles interessam para a história bíblica, a saber, Ptolomeu e Seleuco. Ptolomeu assumiu o território do Egito e logo se apossou da Palestina. Seleuco tomou o controle da Babilônia e da Síria. Mais tarde, no início do século II a.C., a dinastia de Seleuco arrancou a Palestina das mãos dos governantes egípcios ptolomeus.

Posteriormente derrotado pelos romanos na Europa e na Ásia, o poder dos selêucidas entrou em decadência. As dificuldades financeiras, as pressões do Egito no sul e a constante ameaça de Roma levaram à adoção de medidas desesperadas para manter a unidade política entre os territórios dominados e providenciar sustento econômico. O governante selêucida na ocasião, Antíoco IV (175 – 164 a.C.), promoveu a cultura e a religião gregas e saqueou os tesouros de vários templos nativos. A resistência dos judeus diante das inovações de Antíoco (que deu a si mesmo o título “Epífanes” – o deus manifesto, o representante visível de Zeus) fez explodir uma perseguição violenta. As práticas religiosas judaicas, tais como a circuncisão, o sábado e as festas, foram proibidas sob pena de morte. O Templo de Jerusalém se tornou um local de sacrifícios para deuses estrangeiros.

O livro de Daniel foi escrito para os judeus que sofriam por causa da sua fé naqueles dias difíceis. Na primeira parte do livro (capítulos 1 a 6), o autor narra as experiências de Daniel, um judeu que vivera na Babilônia durante o exílio de seu povo no século VI a.C. Daniel e alguns companheiros têm a sua fé duramente testada pelos babilônicos e persas, mas superam as provas confiando no seu Deus. A esperança apocalíptica na soberania de Deus sobre a história dos reinos humanos está presente em todas as narrativas: “(...) o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens, e o dá a quem quer, e até o mais humilde dos homens constitui sobre eles” (Dn 4.17).

Na segunda parte (capítulos 7 a 12), são relacionadas com Daniel profecias sobre o plano da história que vêm a ele na forma de sonhos e visões. As revelações são feitas com o uso de vários símbolos. Eles descrevem a ascensão e a queda de quatro impérios sucessivos – babilônico, medo, persa e grego (capítulo 7), a vitória de Alexandre sobre os persas e a divisão do seu reino (capítulos 8 e 10), as medidas repressivas de Antíoco IV Epífanes (capítulo 9), as guerras entre os ptolomeus e os selêucidas, o fim de Antíoco IV Epífanes (capítulo 11), a libertação final dos judeus e a ressurreição dos justos (capítulo 12). A obra quer trazer consolo e paciência, assim também manter viva a fé na vitória definitiva do Deus judaico e seus eleitos. A mensagem de liberdade e ressurreição antecipa a proclamação do reino de Deus por Jesus e os seus apóstolos no Segundo Testamento cristão.

A versão do livro de Daniel conservada na Bíblia judaica foi elaborada em duas línguas. Os trechos 1.1 – 2.4a e 8.1 – 12.13 estão escritos em hebraico. O trecho 2.4b – 7.28 é apresentado em aramaico. Essa versão mais curta foi também adotada pelos cristãos protestantes.

A versão da Bíblia grega (a Septuaginta – LXX) destaca-se por conter material adicional: a oração de Azarias (3.24-45), uma perícope de transição (3.46-50), o cântico dos três jovens na fornalha (3.51-90), a história de Susana (capítulo 13) e a narrativa sobre Bel e o dragão (capítulo 14). O cristianismo católico considera canônicas essas adições gregas.

Sugestão de leitura:

NIEHR, Herbert. O livro de Daniel. In: ZENGER, Erich et alii. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São Paulo: Loyola, 2003. Págs. 448-460. Coleção "Bíblica Loyola", n. 36.

sábado, novembro 04, 2006

Sobre maus tratos aos animais.

Ao passar pelas ruas, já me deparei com animais em situações lamentáveis e a minha pergunta, sempre acompanhada de uma profunda angústia existencial, era: Qual o sentido disso? A gente sente um misto de revolta e tristeza, pensando que o animal sofre e sem entender por quê. Mas sabe o que mais me aborrece e acho o cúmulo da contradição? Pessoas que se dizem cristãs e que tratam mal os animais.

A pequena história de Jonas é emblemática em relação a essa questão. O livro termina com YHWH dizendo a um Jonas contrariado o seguinte (4.10-11, BJ):

"Tu tens pena da mamoneira, que não te custou trabalho e que não fizeste crescer, que em uma noite existiu e em uma noite pereceu. E eu não terei piedade de Nínive, a grande cidade, onde há mais de cento e vinte mil homens, que não distinguem entre direita e esquerda, assim como muitos animais?"

YHWH tem piedade dos animais! E como é que gente que confessa a graça de Jesus, o enviado de YHWH, pode ser capaz de agir com crueldade e cinismo para com os animais? Segundo o Evangelho de Mateus, Jesus afirmara que o Pai celeste alimenta as aves do céu (6.26). Insistimos que o ser humano é imagem e semelhança de Deus. De fato, a antropologia bíblica coloca a coisa nesses termos (Gn 1.27). Todavia, essa declaração pode ser, contra nós, uma condenação, na medida em que optamos pela dessemelhança divina ao maltratar as outras criaturas do Senhor.

Para aquele(a) que é cristã(o), mas por alguma razão está acostumado(a) a usar de violência gratuita contra os animais, digo com toda a franqueza: ESSA PESSOA ESTÁ NEGANDO O CRISTIANISMO! E não adianta vir com a história de que se garante é na "graça" de Deus. Declarações, na fé cristã, não valem NADA se não vierem acompanhadas do devido compromisso interior QUE SE EXPRESSA NO EXTERIOR: "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estais cheios de rapina e de intemperança! Fariseu cego, limpa primeiro o interior do copo para que também o exterior fique limpo!" (Mt 23.25-26)

Na carta de Tiago (2.24) se diz de modo bem claro: "Estais vendo que o homem é justificado pelas obras e não simplesmente pela fé". Sugiro a leitura de Tiago 2.14-26.

Ao dizer que não me convence alguém dizer que se garante na graça de Deus, levo em consideração um eventual interlocutor que, empunhando esse discurso, queira justificar uma atitude inconseqüente em relação ao trato com os animais. Sinceramente, se uma pessoa cristã maltrata os animais, mas considera que a salvação pessoal é outra questão, que absolutamente não passa por um sentimento de indignação e uma postura diferente em relação à vida das diversas espécies de animais e vegetais que habitam o planeta, penso que ela possui uma deficiência gravíssima em sua compreensão tanto das exigências teológicas relacionadas à criação quanto à questão da salvação. O discurso de justificação pela fé somente não justifica nunca qualquer atentado arbitrário contra qualquer forma de vida. Pelo contrário, justificação pela fé significa que Deus aceita incondicionalmente o ser humano e não exige deste menos do que a aceitação incondicional da vida alheia, seja humana, seja animal. Paulo diz que o destino da criação está relacionado à manifestação dos filhos de Deus (Rm 8.19-23). Não é possível, pois, que passe em branco a nossa responsabilidade como cristãos de demonstrar, sim, pelas nossas obras, a presença de Deus no mundo e o seu amor em relação a toda a sua criação. Sabemos que muitas espécies animais e vegetais, além da própria atmosfera do planeta, sofrem as agressões de sistemas políticos e econômicos difundidos ao redor do globo, cujos representantes não se importam com nada que não seja a consecução de seus próprios interesses. Como o profeta João, que lutou contra semelhante sistema de alienação - os cristãos destinatários do Apocalipse estavam sendo perseguidos por um sistema ideológico preocupado exclusivamente com a manutenção da opressão representada pelo imperialismo romano -, é necessário que concretizemos a manifestação de Deus no mundo por meio de atitudes diferenciadas que promovam a vida, a dignidade e o respeito para com todas as criaturas. Em termos práticos (e por isso citei Tiago), que valor tem uma fé que não muda em nada as condições de existência aqui? Por mais espiritual que seja o discurso da justificação, ele não pode ficar restrito a uma perspectiva vertical e escatológica, a respeito da qual, inclusive, no que se refere à sua consecução, não podemos fazer absolutamente nada. O que deve acontecer quando o reinado de Deus se estabelecer definitivamente é de competência exclusiva de Deus. Todavia, o que acontece em nossa atual dimensão de existência diz respeito principalmente a mim. Creio, sim, que Deus está ao meu lado para me ajudar. Porém, os desafios teológicos e práticos que a realidade social contemporânea põe, põe-nos diante de mim, não diante de Deus. Sou desafiado por Deus para resolvê-los com ele ao meu lado, mas quem tem de se posicionar sou eu.

Como os homens se aproximam de Deus? Acredito que os textos bíblicos sustentem uma realidade essencialmente misteriosa, mas que admite tanto que Deus os atraia como que eles respondam fazendo uso de suas faculdades de cognição e volição. Os textos bíblicos, a meu ver, estão preocupados em testemunhar a intenção e o poder de Deus de salvar, como também querem desafiar o ser humano a se posicionar, a um só tempo, diante de Deus, de si mesmo e do próximo. "Ninguém vem a mim se o Pai não o trouxer", mas também "Retornem (ou "mudem a sua mente") porque o reinado de Deus está próximo".

Ao citar Tiago, faço-o para destacar que a espiritualidade bíblica não separa fé e obras. A ponto desse autor indagar: "Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a subsistência de cada dia, e alguém dentre vós lhes disser: 'Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos', e não lhes der o necessário para a sua manutenção, que proveito haverá nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, está morta em seu isolamento" (Tg 2.14-17, BJ). Logo, a fé só demonstra a sua eficácia como salvadora se ela se concretiza em ações que beneficiem o necessitado; em outras palavras, se ela mesma, por meu intermédio, uma vez desafiado inicialmente por Deus, salva aqueles que estão "perdidos", seja qual for a qualidade de sua desorientação. Paulo percebeu a indissociabilidade de fé e obras, e também João. O primeiro considera que a graça de Deus significa que "fomos criados em Cristo Jesus para as boas obras que Deus já antes tinha preparado para que nelas andássemos" (Ef 2.10, BJ). O segundo afirma categoricamente: “Se alguém disser: 'Amo a Deus', mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar" (1Jo 4.20, BJ). Hebreus 11, penso, poderia ser sintetizado na fórmula: "Pela fé, fizeram..." E Jesus, "(...) que passou fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo diabo, porque Deus estava com ele" (At 10.38, BJ), segundo os sinóticos, ensinou o amor estendido ao necessitado como caminho da felicidade e certeza de fé: "Ao dares um almoço ou jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos; para que não te convidem por sua vez e te retribuam do mesmo modo. Pelo contrário, quando deres uma festa, chama os pobres, estropiados, coxos, cegos; feliz serás, então, porque eles não têm com que te retribuir. Serás, porém, recompensado na ressurreição dos justos" (Lc 14.12-14, BJ). Citei aquela outra passagem, de Mt 23.25-26, para mostrar também essa indissociabilidade. Não se diz “limpe-se o interior do copo e do prato”, mas sim, “limpe-se o interior do copo e do prato, para que o exterior também fique limpo”. Salvar as baleias e os pandas pode não acrescentar nada à salvação do ponto de vista vertical ou metafísico, mas do ponto de vista horizontal ou histórico é concretização da esperança à qual a fé se refere, esperança da qual a fé não pode ser separada. A salvação de Deus, conforme entendo a Bíblia, é um cruzamento das linhas vertical e horizontal, nas quais consiste a experiência religiosa humana. E fé só vertical ou metafísica não muda realidade nenhuma. De igual modo, fé simplesmente horizontal ou histórica, mais dia menos dia, vai desagüar no desespero.

Em relação ao fato de que há cristãos que, lamentavelmente, maltratam animais (e pessoas), já vi gente citar tradições medievais e lendas absurdas para justificar maus tratos. Está mais do que na hora dos cristãos romperem com esse tipo de coisa, que nunca fez bem algum em toda a história do cristianismo, e assumirem um compromisso incondicional com a vida.

Não considero que a graça de Deus não baste. Basta que eu "pense" para perceber que ou Deus me aceita incondicionalmente ou eu estou perdido. Quero enfatizar, porém, é que um discurso sobre a graça de Deus não faz sentido se essa graça não se traduz em atitude graciosa do ser humano para com o ser humano. Conforme disse acima, a respeito do que Deus vai fazer comigo na, digamos, "consumação", é algo sobre o qual, absolutamente, eu não tenho domínio nenhum. Nem mesmo posso provar racionalmente que haverá uma consumação. Diante da proclamação bíblica, só tenho duas opções: arriscar-me, aceitando-a até as últimas conseqüências, ou arriscar-me, rejeitando-a, com todas as implicações que isso venha a ter. Entretanto, posso e devo, aqui, lutar para que as coisas se tornem melhores do que são. Não acho que Deus requeira menos de mim.

Em relação ao nosso papel no mundo enquanto cristãos, creio que devemos pensar como os reformadores: "Que Deus me ajude!"

Construir a história com Deus.

“No princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). O sentido desse verso inicial da Bíblia é inequívoco: o universo (os céus e a terra, isto é, a realidade visível na concepção dos antigos hebreus) foi formado por Deus. O tempo cronológico aqui é o que menos importa. “No princípio” tem muito mais a ver com a mitologia, isto é, a descrição imaginária com a qual se representa a transcendência de Deus, do que com fatos históricos. Porém, é indiscutível a crença comunicada nessa frase de que o Deus que se representa por meio de linguagem mítica interage com a história humana, de modo que Ele mesmo é origem e sentido de tudo o que existe.

Na narrativa inicial do Gênesis, a ação divina governa os fenômenos naturais (o vento, os movimentos das águas, os ciclos dos astros, a fecundidade da terra e dos seres vivos) e, assim, o mundo adquire a sua forma. A ordem percebida na natureza inspira no ser humano observador a fé em um Deus elevado sobre essa harmonia de todas as coisas. Mas, “esse Deus não é um deus qualquer”, diriam os israelitas na antiguidade. “É o Deus da minha experiência, com a companhia do qual venho construindo e compreendendo a minha realidade histórica”. Pode-se dizer, então, que fé é isso: construir a história com Deus e perceber Deus na história.

Por essa razão, talvez, seja dado um destaque à formação do ser humano. É com o homem e a mulher que Deus pretende governar o mundo, preservar a beleza da dinâmica dos processos naturais, fazer história. Em sua existência no mundo, pois, o ser humano busca compreender a si mesmo. As pessoas de Israel, na antiguidade, ao perguntarem pelo sentido de sua história, sentiram um Outro presente e reconheceram essa presença que lhes soava como uma voz: “Façamos o ser humano (...)”. Ao indagar, então, a respeito de minha própria pessoa e dos rumos de minha história, sou convidado pelo texto bíblico a interpretar essas questões à luz da voz do Outro que me diz que sou uma criação divina, com quem Deus deseja escrever uma história neste mundo e a favor deste mundo.

terça-feira, outubro 31, 2006

A Bíblia [1].


Na Bíblia judaica, encontramos a palavra sêfer [1] (livro) designando tanto registros genealógicos (p. ex. Gn 5.1) como documentos contendo palavras de um profeta (p. ex. Jr 36.2/43.2 [LXX]; Dn 9.2). Na Septuaginta (LXX) - uma versão para o grego da Bíblia judaica que possui, ainda, variados acréscimos - utiliza-se nessas passagens as palavras bíblos [2] e biblíon [3]. Evidentemente essas ocorrências não encerram o significado que o termo “Bíblia” possui atualmente, mesmo porque se referem a materiais isolados e não a um determinado número de livros reunidos e canonizados, isto é, considerados sagrados em seu conjunto. Entretanto, a expressão grega tó biblíon [4] (o livro), especificamente o seu plural tá biblía [5] (os livros), é que está na origem da palavra em português.

No prólogo do livro do Eclesiástico ou "Sabedoria de Jesus, filho de Sirac" (cf. Eclo 51.30), produzido originalmente em hebraico no séc. II a.C. e depois vertido para o grego, constando na LXX, indica-se, provavelmente, a existência de pelo menos duas coleções de livros para a instrução (Pról., 1-3) [Obs.: As expressões entre parêntesis na transliteração das palavras em grego assinalam a pronúcia do termo anterior, para evitar confusão.]: pollôn kai megálon hemin (remin) diá tu nómu kai tôn profetôn kai tôn állon tôn kat' autus ekolutekóton dedoménon, hupér (ruper) hon (ron) déon estin epainein tón Israel paidéias kai sofias (...) [6] [Muitas e grandes coisas foram dadas para nós através da lei e dos profetas e dos outros que seguiram a eles depois, pelas quais é preciso louvar Israel, sua instrução e sabedoria (...)].

No Novo Testamento grego, encontramos as expressões hó (ró) nómos kai hói (rói) profêtai [7] [a lei e os profetas] (p. ex. Mt 7.12) e hó (ró) nómos Mouséos kai hói (rói) profêtai kai psalmói [8] [a lei de Moisés, os profetas e os salmos] (p. ex. Lc 24.44), as quais designam já livros recebidos pelas comunidades judaicas como possuindo autoridade religiosa. Cabe lembrar, todavia, que eles ainda não representam um conjunto fechado de literatura sagrada, pois parece que os distintos partidos religiosos dentro do judaísmo mediterrâneo no 1o século da era cristã tinham cada qual as suas preferências por determinados livros em detrimento de outros. Entre os primeiros grupos cristãos, os escritos hebraicos do judaísmo, e também suas versões em grego, são, sem dúvida, referência para a espiritualidade. E isso, certamente, incluía outras obras que circulavam e eram apreciadas nas comunidades – p. ex. escritos apocalípticos, tais como o 1o Livro de Enoque e o Testamento de Moisés, cuja citação é explícita ou sugerida na Epístola de Judas (9, 14-15).

Outra palavra importante do vocabulário do Novo Testamento grego utilizada para designar produções literárias consideradas sagradas é grafê [9] [escritura] (p. ex.: Mt 26.54; 2Pd 1.20). Curioso sobre essa palavra é que, na 2a Epístola de Pedro, ela é mencionada juntamente com os escritos de Paulo da seguinte forma: Considerai a longanimidade de nosso Senhor como a nossa salvação, conforme também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada. Isso mesmo faz ele em todas as suas cartas, ao falar nelas desse tema. É verdade que em suas cartas se encontram alguns pontos difíceis de entender, que os ignorantes e os vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para a sua própria perdição (3.15-16; BJ). Isso pode indicar uma época em que os escritos paulinos já adquiriram em certas comunidades um status normativo em matéria de fé e conduta ao lado dos livros sagrados provenientes do judaísmo.

Algumas palavras sobre o livro de Qohélet [1].


Qohélet [1] é o termo hebraico correspondente ao grego Ekklesiastes. Tanto um como outro designam provavelmente uma pessoa que se dirige a uma assembléia ou grupo de pessoas. Assim, Jerônimo (c. 340 – 420), em sua versão da Bíblia para o latim, traduziu a palavra para “contionator” (orador popular). Mas Martinho Lutero (1483 – 1546), ao verter o termo hebraico para o alemão (“prediger” = “pregador”), restringiu-o ao ambiente eclesiástico (obviamente mais adequado ao séc. XVI do que ao contexto histórico em que foi produzida a obra) [2]. Um dos epílogos do livro parece indicar o Qohélet como um colecionador de provérbios (12.9bβ), além de um mestre do povo (12.9bα) [3].

A palavra “qohélet” (particípio feminino da raiz qahal, “reunir em assembléia”), da forma como é utilizada ao longo do livro [4], parece ser um nome próprio, conforme acontece com algumas formas paralelas encontradas em Ed 2.55, 57; Ne 7.57, 59, originalmente designativos de funções, mas agora utilizados como nomes próprios. O que coloca uma dificuldade em relação a essa hipótese é o fato da palavra vir precedida de um artigo em 12.8 [e, talvez, 7.27] [5] (haqqohélet), o que indicaria estar se referindo a uma função [6].

Pelo título do livro (1.1) e uma espécie de resenha autobiográfica (1.2 - 2.11), dá-se a entender que quem fala é Salomão (cf. 1Rs 5.1-14; 10.1 - 11.1). A tradução judaica antiga sustentava que os livros de Cântico dos cânticos, Provérbios e Eclesiastes representariam três fases da vida do filho de Davi: juventude (ênfase no amor), maturidade (ênfase em problemas práticos) e velhice (ênfase na fugacidade da vida) [7]. Muitos pesquisadores atualmente, entretanto, baseando-se na linguagem e na estrutura do livro, consideram difícil atribuir ao rei sábio do séc. X a.C. a autoria [8]. Talvez a auto-apresentação de Qohélet como Salomão sirva à apreciação do tema da obra: o ser humano não obtém a felicidade acumulando riquezas, executando grandes empreendimentos ou colecionando paixões amorosas para si. A felicidade se experimenta no desfrute daquilo que o trabalho pode proporcionar (2.24; 3.12-13; etc.) em solidariedade e companhia (4.7-12; 9.7-9), pois Deus, de quem vem tais dons, agrada-se disso (2.24; 9.7).

Qohélet é um crítico da sabedoria do seu tempo. Para ele, a observação da vida apenas permite concluir que não se pode desvendar como Deus realiza a sua obra (3.11; 8.16-17). A doutrina da retribuição - para os que fazem o bem sucede o bem e para os que fazem o mal o contrário - não se verifica sempre na prática (8.10-14). Qohélet tem consciência da distância que separa o ser humano e Deus (5.1[2]). Para ele Deus tem poder sobre as obras humanas e não se deixa enganar com palavras vazias (5.3[4]-5[6]). Qohélet demonstra a sua reverência por Deus quando o apresenta como o insondável, cuja obra ninguém conhece (11.5), o criador do homem e fonte da retidão (7.29), doador e retomador do sopro vital dos seres vivos (3.18-21; 12.7), requerente das promessas que lhe fazem (5.3[4]-5[6]).

Notas:

[1] Alguns autores preferem a grafia “Coélet”.

[2] LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p. 430.

[3] É geralmente reconhecido que a obra possui dois epílogos distintos não escritos por Qohélet. Cf. Ibid, p. 413-14.

[4] A palavra é utilizada sete vezes: 1.1, 2, 12; 7.27; 12.8, 9, 10.

[5] O aparato crítico da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, tomando por base 12.8 e o texto grego – eipen ró ekklesiastés, “disse o Eclesiastes” – propõe como possibilidade de leitura, além de ’amrah qohélet, “disse Qohélet” (com o verbo na forma feminina), ’amar haqqohélet, “disse o Qohélet” (com o verbo na forma masculina).

[6] Embora considere que o termo Qohélet se refere a um homem, Fohrer apresenta a tradução aproximada “aquela que reúne”. FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento, p. 499. Para Sandro e Ana Maria Rizzante Gallazzi, “Qohélet nada mais é do que uma pessoa que está presente na reunião. [...] É simplesmente alguém que está lá, que está presente. Não é o pregador, não tem tarefas na reunião. É um simples membro, justamente o que seria uma ‘mulher’ na sinagoga judaica. [...] Parece-nos correto e gostamos de pensar em Qohelet como uma mulher, certamente não a única, descritiva das e dos ‘demais’, do ‘povo em geral’, das que não são autoridades nem civis, nem militares, nem religiosas. Uma ‘qohelet ninguém’, mas que um dia cria coragem e fala!” GALLAZZI, Sandro e Ana Maria Rizzante. O teste dos olhos, o teste da casa, o teste do túmulo (Uma chave de leitura do livro de Qohelet). In: REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA LATINO-AMERICANA, n. 14 – 1993/1, p. 55. Líndez cita autores para os quais Qohélet personifica a Sabedoria ou algum tipo de associação (a academia ou a assembléia). LÍNDEZ, José Vílchez. Op. Cit., p. 427, nota 20.

[7] LÍNDEZ, José Vílchez. Op. Cit., p. 12, nota 2.

[8] Cf. Ibid., p. 11-14.

Referências Bibliográficas:

BIBLIA HEBRAICA STUTTGARTENSIA. 4. ed. Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart: Stuttgart, 1990. 1574 p.

FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. D. Mateus Rocha. São Paulo: Paulinas, 1977. 825 p. 2 vol.

LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1990. 510 p.

RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart: Stuttgart, 1979. Volume único.

REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA LATINO-AMERICANA, N. 14 – 1993/1. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1993.

segunda-feira, outubro 30, 2006

Zoando, mas falando sério: uma reflexão sobre o texto "O Ateu" que o Romão me mandou.

Com esse texto você acabou de assassinar o cristianismo que você mesmo defende. O texto afirma que:

1 - Deus só leva em consideração as pessoas que acreditam nele.
Jesus, por outro lado, segundo o quarto evangelista (se bem que não há clareza se ele atribuiu ou não essas palavras a Jesus), teria dito que Deus amou O MUNDO e, por isso, deu o seu único Filho para que a VIDA ETERNA (posto que o milagre da vida Ele o deu a todos) seja alcançada por aqueles que crêem. O NT nunca disse que A RESPEITO DESSA VIDA AQUI haveria mais ou menos privilégios para um ou outro, que esse ou aquele seria mais ou menos objeto da atenção do SENHOR. Além do mais, o amor de Deus não é absolutamente dado depois de alguns seres humanos terem crido, mas bem antes, independente de crerem ou não. O crer no Filho para ter a vida eterna é uma oportunidade dada ao mundo que foi amado por Deus antes!

2 - Deus não suporta os ateus.
Jesus, segundo o Evangelho de Lucas, teria, ao contrário, se enfurecido com os seus seguidores por não aceitarem eles que alguém não recebesse Jesus e se posicionasse, assim, contra a verdade absoluta deles, que eles acreditavam ser aquele homem magnífico que seguiam. Eles até acreditavam que Deus poderia atender o seu pedido, como supostamente atendera ao de Elias, de mandar descer fogo do céu e consumir aqueles insolentes (olhe só que fé, que piedade!). Jesus os repreende por não saberem a que espírito pertenciam (ué, mas não estavam seguindo Jesus?), e não concorda que o fogo do céu seja o destino daqueles que não o receberam. E aí vem você e mostra Deus autorizando um urso a acabar com aquele que não acreditava. Pior, Deus mesmo torna o urso cristão!!! Acho que o urso não matou só o ateu, não. Acho que matou Jesus junto...

3 - Deus tem mais prazer com a verdade do que com a vida.
No seu texto Deus faz milagres - o tempo parar, o rio estacionar, o urso falar e, ainda por cima, orar! - para condenar à morte um coitado que estava simplesmente usufruindo o direito dado por Deus mesmo (segundo uma fé minimamente cristã) de pensar diferente da religião cristã! Jesus, segundo os evangelistas, por colocar a vida acima da verdade, foi morto por aqueles que colocavam a verdade acima da vida. E vem Pilatos e (conforme relata o quarto evangelista), diante daquele homem que ousou desafiar o sistema político dos romanos e o legalismo da religião judaica da época (ou seja pensar diferente da verdade estabelecida, que convinha a alguns), faz a pergunta mais cínica da história: "Que é a verdade?" Ah, me poupe!

4 - Deus precisa se justificar diante de teorias humanas com teorias humanas (!).
O ateu é entregue à morte por Deus por optar pela teoria “humana”, “satânica”, “mentirosa”, “fatalista”, “dos homens sem fé”, “tendenciosa”, “positivista”, etc, etc, etc. da evolução das espécies. Ora, que eu saiba, quem sempre produziu e articulou, e produz e articula ainda, qualquer discurso sobre a criação foram e são somente os seres humanos. Seres humanos que, valendo-se da univocidade de acesso ao Sagrado, um sem-número de vezes agiram e agem (mesmo na Bíblia) de forma satânica, mentirosa, fatalista, de homens sem fé, tendenciosa, positivista, etc, etc, etc. A idéia da criação é exatamente isso, uma idéia, coisa da cabeça de gente, idéia inclusive bastante fácil de elaborar, pois se é da natureza humana criar e esmerar-se para criar sempre melhor, é lógico que a natureza, que é algo esplendoroso, incomparável, só poderia ser interpretada pela utilização do mesmo raciocínio: algo maravilhoso assim só poderia ser criado por alguém que é pessoa como eu, porque só pessoas são capazes de criar. Se Deus é Deus, como o cristianismo diz que é, não me parece que ele precise se incomodar tanto com o livre exercício do pensar por parte dos seres humanos. Afinal de contas, (supõe-se) Ele os criou para isso mesmo, para passar a vida toda tentando entender o que é o universo. "Cada cabeça, uma sentença". Portanto, cada pessoa uma idéia, cada idéia uma teoria. E se Deus for se incomodar com isso, ele estará contradizendo a sua própria criação. Mas o problema não está em Deus, mas nos seres humanos, evolucionistas ou criacionistas, estes, talvez, pior do que aqueles, porque querem definir o sagrado indefinível em que dizem acreditar. Alguns evolucionistas, em todo caso, nem acreditam em Deus mesmo... Jesus – segundo as palavras atribuídas a ele pelos evangelistas sinóticos, especificamente Mateus – é o melhor exemplo de alguém que não tenta justificar Deus com teorias humanas: referindo-se à interpretação da lei do Pentateuco, ele teve a coragem de dizer que a sua interpretação da lei não era a dos antigos, a dos fariseus ou tampouco uma interpretação autorizada pelo próprio Deus em pessoa. Parafraseando Jesus em Mateus: "O que eu digo a respeito da lei, meus caros, SOU EU MESMO QUE DIGO!"

Bem, acho que já deu para sentir que o ateu mesmo é você, não? Pelo menos em relação ao Deus do Jesus do NT, no qual você, paradoxalmente, diz crer. Cuidado com o urso!

Criados para serem felizes?

Já ouvi algumas pessoas dizerem que Deus não criou os seres humanos para serem felizes, mas apenas para cumprir propósitos determinados por ele. Sinceramente, discordo dessa opinião, uma vez que a posição do Qohélet, em especial, e da Bíblia, no geral, não parece ser essa. A começar pela experiência fundamental da fé judaica que é o êxodo - a libertação de escravos hebreus do jugo do império egípcio para viverem em liberdade e justiça em uma terra boa e fértil. A Bíblia também testemunha que houve aqueles, entre os próprios israelitas, que se opunham a essa liberdade em prol de seu próprio bem-estar e lucro em todos os sentidos. Os profetas, por exemplo, protestam em vários momentos contra a opressão perpetrada pelas monarquias israelita (no norte) e judaica (no sul), as quais tornavam a experiência de boa parte das populações daqueles reinos novamente uma escravidão e uma angústia. É a favor do igualitarismo e da vida e contra a concentração do poder e da riqueza que vários textos bíblicos recriminam reis, sacerdotes, profetas e cultivadores de uma cultura de sabedoria que, mesmo se utilizando de ideologias supostamente fundamentadas em determinações do SENHOR, obscureciam a glória de Deus, cuja manifestação mais clara só poderia ser o bem-estar do ser humano: "Pouco menor do que Deus o fizeste (o ser humano); de glória e de honra o coroaste e lhe deste domínio sobre as obras das tuas mãos" (Sl 8.5-6).

Do mesmo modo, a glória de Deus resplandece no NT em sua expressão máxima com Jesus de Nazaré, um ser humano. A encarnação é a prova por excelência de que a pessoa humana não é simplesmente um boneco de barro sem valor, mas o lugar último de manifestação e realização no mundo da presença de Deus. A atitude do homem Jesus, pregador do reinado de Deus e dispensador de suas novas - entre as quais: alimento aos famintos, bens aos pobres, dignidade às prostitutas, adúlteros e pecadores -, não deixa dúvidas quanto ao desejo de Deus de (re)estabelecer no ser humano um novo referencial de existência: vida, liberdade, justiça, amor, serviço. E foi por acreditar nisso e viver isso até as últimas conseqüências que ele morreu - "Foi obediente até a morte e morte de cruz" (Fp 2.8). O Cristo ressuscitado, cujo fulgor irradiou do túmulo escuro na madrugada do primeiro dia da semana, de acordo com a experiência, esperança e proclamação daqueles que o acompanharam até o fim, anuncia o destino último do ser humano: ter em si próprio, sem quaisquer obstáculos ou limitações, a própria vida do Criador. É curioso que o Ressuscitado viva, inclusive, na vida de seus seguidores e por eles continue a obra que o Pai lhe dera: "Estarei convosco todos os dias, até a consumação do século" (Mt 28.20). Se somos seguidores de Jesus, e cremos que ele vive em nós pelo Espírito, não temos outra missão senão a de anunciar às pessoas os referenciais de (nova) existência trazidos por ele: vida, liberdade, justiça, amor, serviço.

Concordo que nossa época é marcada por extremos. Há aqueles que insistem em reduzir o sentido do ser humano a si próprio enquanto indivíduo, mesmo que isso implique desprezar o homem enquanto outro, comunidade e espiritualidade. De igual modo, não faltam os que só conseguem enxergar no ser humano uma nobreza que não pode estar nele próprio, conquanto ser-no-mundo, mas além dele próprio, na dimensão do "espírito". A mulher e o homem são espiritualidade e corporalidade, e qualquer idéia religiosa que proponha separar esse tecido indivisível é equivocada. Se são os seres humanos que percebem a manifestação de Deus no mundo - pois para eles e por eles se manifesta -, e o fazem com a totalidade do seu ser (Lc 24: os dois discípulos perceberam Jesus entre eles no momento da refeição, ocasião de suprimento do corpo e celebração da hospitalidade e da amizade), não há argumento teológico que justifique uma dissecação do ser humano em busca de uma parte dele que seja "melhor" do que outra.

Não, não concordo que Deus, ao criar o ser humano, não tenha tido em vista fundamentalmente a felicidade de sua criatura; e, pela prática do projeto de Deus (vida, liberdade, justiça, amor, serviço), também a felicidade de todas as demais criações do SENHOR. E isto conclui Qohélet: "Eis o que observo: a felicidade que convém ao homem é comer e beber, encontrando a felicidade em todo trabalho que faz debaixo do sol, durante os dias da vida que Deus lhe concede. Pois esta é a sua porção. Todo o homem a quem Deus concede riquezas e recursos que o tornam capaz de sustentar-se, de receber a sua porção e desfrutar do seu trabalho, ISTO É UM DOM DE DEUS" (Eclesiastes 5.17[18]-18[19]).

Que Deus abençoe a todos.