"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

segunda-feira, outubro 30, 2006

Criados para serem felizes?

Já ouvi algumas pessoas dizerem que Deus não criou os seres humanos para serem felizes, mas apenas para cumprir propósitos determinados por ele. Sinceramente, discordo dessa opinião, uma vez que a posição do Qohélet, em especial, e da Bíblia, no geral, não parece ser essa. A começar pela experiência fundamental da fé judaica que é o êxodo - a libertação de escravos hebreus do jugo do império egípcio para viverem em liberdade e justiça em uma terra boa e fértil. A Bíblia também testemunha que houve aqueles, entre os próprios israelitas, que se opunham a essa liberdade em prol de seu próprio bem-estar e lucro em todos os sentidos. Os profetas, por exemplo, protestam em vários momentos contra a opressão perpetrada pelas monarquias israelita (no norte) e judaica (no sul), as quais tornavam a experiência de boa parte das populações daqueles reinos novamente uma escravidão e uma angústia. É a favor do igualitarismo e da vida e contra a concentração do poder e da riqueza que vários textos bíblicos recriminam reis, sacerdotes, profetas e cultivadores de uma cultura de sabedoria que, mesmo se utilizando de ideologias supostamente fundamentadas em determinações do SENHOR, obscureciam a glória de Deus, cuja manifestação mais clara só poderia ser o bem-estar do ser humano: "Pouco menor do que Deus o fizeste (o ser humano); de glória e de honra o coroaste e lhe deste domínio sobre as obras das tuas mãos" (Sl 8.5-6).

Do mesmo modo, a glória de Deus resplandece no NT em sua expressão máxima com Jesus de Nazaré, um ser humano. A encarnação é a prova por excelência de que a pessoa humana não é simplesmente um boneco de barro sem valor, mas o lugar último de manifestação e realização no mundo da presença de Deus. A atitude do homem Jesus, pregador do reinado de Deus e dispensador de suas novas - entre as quais: alimento aos famintos, bens aos pobres, dignidade às prostitutas, adúlteros e pecadores -, não deixa dúvidas quanto ao desejo de Deus de (re)estabelecer no ser humano um novo referencial de existência: vida, liberdade, justiça, amor, serviço. E foi por acreditar nisso e viver isso até as últimas conseqüências que ele morreu - "Foi obediente até a morte e morte de cruz" (Fp 2.8). O Cristo ressuscitado, cujo fulgor irradiou do túmulo escuro na madrugada do primeiro dia da semana, de acordo com a experiência, esperança e proclamação daqueles que o acompanharam até o fim, anuncia o destino último do ser humano: ter em si próprio, sem quaisquer obstáculos ou limitações, a própria vida do Criador. É curioso que o Ressuscitado viva, inclusive, na vida de seus seguidores e por eles continue a obra que o Pai lhe dera: "Estarei convosco todos os dias, até a consumação do século" (Mt 28.20). Se somos seguidores de Jesus, e cremos que ele vive em nós pelo Espírito, não temos outra missão senão a de anunciar às pessoas os referenciais de (nova) existência trazidos por ele: vida, liberdade, justiça, amor, serviço.

Concordo que nossa época é marcada por extremos. Há aqueles que insistem em reduzir o sentido do ser humano a si próprio enquanto indivíduo, mesmo que isso implique desprezar o homem enquanto outro, comunidade e espiritualidade. De igual modo, não faltam os que só conseguem enxergar no ser humano uma nobreza que não pode estar nele próprio, conquanto ser-no-mundo, mas além dele próprio, na dimensão do "espírito". A mulher e o homem são espiritualidade e corporalidade, e qualquer idéia religiosa que proponha separar esse tecido indivisível é equivocada. Se são os seres humanos que percebem a manifestação de Deus no mundo - pois para eles e por eles se manifesta -, e o fazem com a totalidade do seu ser (Lc 24: os dois discípulos perceberam Jesus entre eles no momento da refeição, ocasião de suprimento do corpo e celebração da hospitalidade e da amizade), não há argumento teológico que justifique uma dissecação do ser humano em busca de uma parte dele que seja "melhor" do que outra.

Não, não concordo que Deus, ao criar o ser humano, não tenha tido em vista fundamentalmente a felicidade de sua criatura; e, pela prática do projeto de Deus (vida, liberdade, justiça, amor, serviço), também a felicidade de todas as demais criações do SENHOR. E isto conclui Qohélet: "Eis o que observo: a felicidade que convém ao homem é comer e beber, encontrando a felicidade em todo trabalho que faz debaixo do sol, durante os dias da vida que Deus lhe concede. Pois esta é a sua porção. Todo o homem a quem Deus concede riquezas e recursos que o tornam capaz de sustentar-se, de receber a sua porção e desfrutar do seu trabalho, ISTO É UM DOM DE DEUS" (Eclesiastes 5.17[18]-18[19]).

Que Deus abençoe a todos.

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