Já ouvi algumas pessoas dizerem que Deus não criou os seres humanos para serem felizes, mas apenas para cumprir propósitos determinados por ele. Sinceramente, discordo dessa opinião, uma vez que a posição do Qohélet, em especial, e da Bíblia, no geral, não parece ser essa. A começar pela experiência fundamental da fé judaica que é o êxodo - a libertação de escravos hebreus do jugo do império egípcio para viverem em liberdade e justiça em uma terra boa e fértil. A Bíblia também testemunha que houve aqueles, entre os próprios israelitas, que se opunham a essa liberdade em prol de seu próprio bem-estar e lucro em todos os sentidos. Os profetas, por exemplo, protestam em vários momentos contra a opressão perpetrada pelas monarquias israelita (no norte) e judaica (no sul), as quais tornavam a experiência de boa parte das populações daqueles reinos novamente uma escravidão e uma angústia. É a favor do igualitarismo e da vida e contra a concentração do poder e da riqueza que vários textos bíblicos recriminam reis, sacerdotes, profetas e cultivadores de uma cultura de sabedoria que, mesmo se utilizando de ideologias supostamente fundamentadas em determinações do SENHOR, obscureciam a glória de Deus, cuja manifestação mais clara só poderia ser o bem-estar do ser humano: "Pouco menor do que Deus o fizeste (o ser humano); de glória e de honra o coroaste e lhe deste domínio sobre as obras das tuas mãos" (Sl 8.5-6).
Do mesmo modo, a glória de Deus resplandece no NT em sua expressão máxima com Jesus de Nazaré, um ser humano. A encarnação é a prova por excelência de que a pessoa humana não é simplesmente um boneco de barro sem valor, mas o lugar último de manifestação e realização no mundo da presença de Deus. A atitude do homem Jesus, pregador do reinado de Deus e dispensador de suas novas - entre as quais: alimento aos famintos, bens aos pobres, dignidade às prostitutas, adúlteros e pecadores -, não deixa dúvidas quanto ao desejo de Deus de (re)estabelecer no ser humano um novo referencial de existência: vida, liberdade, justiça, amor, serviço. E foi por acreditar nisso e viver isso até as últimas conseqüências que ele morreu - "Foi obediente até a morte e morte de cruz" (Fp 2.8). O Cristo ressuscitado, cujo fulgor irradiou do túmulo escuro na madrugada do primeiro dia da semana, de acordo com a experiência, esperança e proclamação daqueles que o acompanharam até o fim, anuncia o destino último do ser humano: ter em si próprio, sem quaisquer obstáculos ou limitações, a própria vida do Criador. É curioso que o Ressuscitado viva, inclusive, na vida de seus seguidores e por eles continue a obra que o Pai lhe dera: "Estarei convosco todos os dias, até a consumação do século" (Mt 28.20). Se somos seguidores de Jesus, e cremos que ele vive em nós pelo Espírito, não temos outra missão senão a de anunciar às pessoas os referenciais de (nova) existência trazidos por ele: vida, liberdade, justiça, amor, serviço.
Concordo que nossa época é marcada por extremos. Há aqueles que insistem em reduzir o sentido do ser humano a si próprio enquanto indivíduo, mesmo que isso implique desprezar o homem enquanto outro, comunidade e espiritualidade. De igual modo, não faltam os que só conseguem enxergar no ser humano uma nobreza que não pode estar nele próprio, conquanto ser-no-mundo, mas além dele próprio, na dimensão do "espírito". A mulher e o homem são espiritualidade e corporalidade, e qualquer idéia religiosa que proponha separar esse tecido indivisível é equivocada. Se são os seres humanos que percebem a manifestação de Deus no mundo - pois para eles e por eles se manifesta -, e o fazem com a totalidade do seu ser (Lc 24: os dois discípulos perceberam Jesus entre eles no momento da refeição, ocasião de suprimento do corpo e celebração da hospitalidade e da amizade), não há argumento teológico que justifique uma dissecação do ser humano em busca de uma parte dele que seja "melhor" do que outra.
Não, não concordo que Deus, ao criar o ser humano, não tenha tido em vista fundamentalmente a felicidade de sua criatura; e, pela prática do projeto de Deus (vida, liberdade, justiça, amor, serviço), também a felicidade de todas as demais criações do SENHOR. E isto conclui Qohélet: "Eis o que observo: a felicidade que convém ao homem é comer e beber, encontrando a felicidade em todo trabalho que faz debaixo do sol, durante os dias da vida que Deus lhe concede. Pois esta é a sua porção. Todo o homem a quem Deus concede riquezas e recursos que o tornam capaz de sustentar-se, de receber a sua porção e desfrutar do seu trabalho, ISTO É UM DOM DE DEUS" (Eclesiastes 5.17[18]-18[19]).
Que Deus abençoe a todos.
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