"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

terça-feira, julho 28, 2009

As brumas

Noite sob quase zero grau.
Brumas paridas do fôlego
Amadurecem num ritmo trôpego,
Bruxuleio infinitesimal.

Era o mergulho no infinito!
Felicidade e perplexidade!
Efemeridade e mortalidade.
Soçobrou, soçobrou o mito...

A geada, voraz, amanheceu
E não deixou ervas nenhumas!
Sob o pensamento, o dogma feneceu...

Sob o sol, borbulharam espumas,
Bolhinhas multicores como um camafeu,
Lindas e fugazes como as brumas.

Novo Hamburgo, RS

domingo, julho 19, 2009

A Bíblia: novelas, sagas e milagres

A Bíblia é literatura. Seus textos testemunham com que modos variados os antigos hebreus desenvolviam a arte escrita para interpretar as suas sociedades e teologias. Se a Bíblia é um conjunto de peças literárias, naturalmente se pode estudar os gêneros de literatura que elas representam. Detendo-me nos gêneros narrativos, pretendo falar aqui a respeito de três deles, os quais podem ser observados no Antigo Testamento: a novela, a saga e a história de milagre.

A NOVELA descreve vários acontecimentos ligados à vida de um personagem, assim como os seus sentimentos e as suas reações. Geralmente, o personagem está destinado a preservar a vida de um clã ou grupo de famílias (p. ex. a novela de José). Também pode ser que a Providência valha-se do protagonista para evitar o extermínio de um povo (p. ex. a novela de Ester). Na novela de Rute, a protagonista é introduzida na linhagem de um personagem ilustre da história de Israel, o rei Davi (Rute 4.13-22).

Tomo como exemplo a história de José (Gênesis 37; 39 – 50) para ilustrar os três tempos nos quais se desenrola a trama da novela: A) INÍCIO (uma situação de conflito) – José é odiado e vendido por seus irmãos (37); B) MEIO (o conflito se complica cada vez mais) – José é caluniado e preso (39 – 40); C) FIM (a resolução do conflito) – José se torna governador do Egito, reconcilia-se com seus irmãos e reencontra Jacó, seu pai (41 – 50).

A SAGA quer explicar alguma situação no presente a partir de um acontecimento do passado. A história da transgressão dos primeiros seres humanos (Gênesis 3) esclarece o porquê da inimizade entre a serpente e o homem (versículo 15), da maneira como a serpente se locomove (versículo 14), das dores de parto da mulher (versículo 16), da canseira do trabalho do ser humano (versículos 17-19), etc. Já a narrativa da construção da torre de Babel quer desvendar a origem da cidade de Babilônia e do fenômeno da multiplicidade das línguas dos habitantes da região do Mediterrâneo e do Crescente Fértil (Gênesis 11.1-9). A história da prova de Abraão (Gn 22) mostra por que os israelita resgatam seus filhos primogênitos ao invés de sacrificá-los à divindade.

A HISTÓRIA DE MILAGRE tem o propósito de incitar ou fortalecer a fé. No centro da narrativa pode estar um profeta (p. ex. Elias), um mártir (p. ex. Os amigos de Daniel), um local sagrado (p. ex. Betel) ou um rito (p. ex. a circuncisão). Na história de 1Reis 17.7-16, a palavra de Iavé por meio de Elias tornou-se acontecimento real: o óleo e a farinha da viúva de Sarepta foram multiplicados. Os três amigos de Daniel escaparam ilesos das chamas da fornalha onde tinham sido lançados por terem se recusado a curvar-se diante da estátua de ouro de Nabucodonosor (Dn 3). Jacó consagrou uma estela que erigira em certo lugar como uma casa de Deus (heb. Beit-El – Betel), porquanto ali sonhara com uma escada em que os mensageiros celestes de Deus subiam e desciam (Gn 28.10-22). A narrativa quer explicar por que Betel era considerado um lugar sagrado. Em Gênesis 17, o rito da circuncisão foi instituído por ocasião de uma aparição de Iavé a Abraão.

Há outros gêneros literários narrativos no Antigo Testamento. Os três expostos – a novela, a saga e a história de milagre – podem ajudar o leitor a identificar e compreender trechos bíblicos nos quais sejam identificadas as mesmas características.

sexta-feira, julho 10, 2009

A Bíblia: o geral ilumina o particular.

No Novo Testamento grego encontramos formas do verbo hermeneuein, cujo significado é precisamente “interpretar”, “explicar”. Veja-se, por exemplo, Lc 24.27, em que o autor diz que Jesus “explicava” aos discípulos que estavam a caminho da aldeia de Emaús aquilo que dizia respeito a ele nas Escrituras. O Jesus lucano confere um novo sentido às palavras do Antigo Testamento e assim o interpreta tomando como chaves de compreensão a sua vida, a sua morte e a sua ressurreição (v. 26).

Hermeneuein dá origem à palavra “hermenêutica” em nossa língua portuguesa. Ela faz parte do vocabulário de algumas áreas do conhecimento, a saber, a Teologia, a Filosofia, a Linguística, a Literatura e o Direito. Designa a arte e a ciência da interpretação de textos. Hermenêutica é arte porque implica o exercício da criatividade do(a) intérprete no manejo do instrumental técnico para alcançar uma compreensão do que se lê. Hermenêutica é ciência porque opera a busca pelos sentidos de um texto mediante a utilização de metodologias científicas de análise. Não há espaço para fazer uma exposição das perspectivas hermenêuticas que têm sido sugeridas atualmente e a partir das quais se pretende ler a Bíblia e “escutar” o que ela tem a dizer para o mundo de hoje. Embora considere fundamental que você, leitor(a), busque conhecer tais propostas, não é o meu objetivo ocupar-me delas neste artigo. O que quero é apenas pensar rapidamente sobre um aspecto importante no que se refere ao entendimento do conteúdo da Bíblia.

Os livros bíblicos foram escritos com finalidades específicas. Isso significa que os diversos textos que os compõem foram elaborados e organizados de modo a favorecer a compreensão das intenções com que os seus autores os produziram e deram forma a eles. Não se pode, portanto, desviar da tarefa de ler e compreender bem TODO UM LIVRO BÍBLICO caso se queira entender suas partes menores. É necessário prestar bastante atenção às expressões que orientam diretamente para o objetivo do livro, bem como às frases ou ideias que se repetem.

No livro do Gênesis, por exemplo, é comum deparar-se repetidas vezes com as expressões “eis as origens de”, “este é o livro da genealogia de”, “esta é a história de”. Por meio delas, podemos supor que esse livro quer esclarecer aspectos ligados ao estabelecimento de determinadas realidades, ao surgimento de certa variedade de nações ou aos registros “biográficos” a respeito de indivíduos específicos. Deve-se sempre lembrar que tais informações querem principalmente fundamentar conceitos sociais e religiosos familiares aos leitores que pela primeira vez receberam o livro. Observe como a narrativa da criação de Gênesis 1.1 – 2.4a confere uma razão teológica para a organização social e religiosa apresentada em Êxodo 20.8-11 (cf. Dt 5.12-15) e 31.12-17. Trabalhar seis dias e descansar no sétimo seria como reviver o próprio acontecimento da criação: “Eis as origens do céu e da terra quando foram criados” (Gn 2.4a).

O propósito do Evangelho de João está exposto de forma bem clara no final do livro: “Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão escritos neste livro; estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.30-31). Se tiver um olhar atento, o(a) leitor(a) perceberá ao longo de toda a obra este convite a crer em Cristo como o enviado de Deus que dá a vida eterna àqueles que aderem à sua mensagem.

O livro dos Atos dos apóstolos já de início elucida a proposta teológica e o itinerário narrativo que irão condicionar a estrutura do conteúdo apresentado: “Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (At 1.8). O livro mostra como o dom do Espírito Santo tornou judeus (cap. 2), samaritanos (cap. 8), romanos (cap. 10), os discípulos de João em Éfeso (cap. 18) unidos sob a fé em Cristo. Apresenta também o crescimento do evangelho começando em Jerusalém (cap. 1 – 7), atingindo outras regiões da Judéia e passando pela Samaria (cap. 8 – 12), estendendo-se até à Ásia menor (cap. 13 – 20) e chegando em Roma (cap. 21 – 28).

Para compreender, portanto, uma passagem bíblica, deve-se examiná-la à luz do contexto do livro ao qual ela pertence.

quinta-feira, julho 09, 2009

Espiritualidade?

O texto a seguir, de 08 de setembro de 2008, é uma contribuição para uma "rodada" do café teológico virtual do qual participaram: Carla Saueressig, Marlova Schneider, Dionata Oliveira, Vanderlei Schneider, Renato Jover, Ruben Marcelino, Marcos Romão Vichi e Israel. Publicação na íntegra.

Olá para todos! A iniciativa da Carla de começar esse café teológico merece ser parabenizada, já que esse diálogo, mesmo que ao redor de uma mesa virtual (por enquanto), pode aproximar os participantes, os quais terão acesso a diversas perspectivas sobre os mais variados assuntos relacionados à espiritualidade.

Li todas as respostas dadas até aqui e notei que, seguindo o fio da mensagem da Carla, o amor e o respeito à diferença receberam o principal destaque. Comentários sobre a prática pessoal do cristianismo também ocuparam lugar na fala dos interlocutores.

O que é a espiritualidade? Ainda estou tentando descobrir. Será amar e respeitar o próximo? Ou orientar a própria a vida a partir de (e em direção a) um referencial estabelecido a priori, através de um comportamento regido ritualística e disciplinadamente pela observância de regras? Ou as duas coisas? Ou nem isso nem aquilo?.

Não há dúvida de que exemplos como o desse rapaz com o qual a Carla conversou podem impressionar. Afinal, religioso ou não, o ser humano parece ter uma necessidade intrínseca de ordenar a realidade à sua volta, de modo a vencer o caos externo com o qual se defronta e superar a aparente falta de sentido incontornavelmente percebida na luta pela sobrevivência e na morte. Desse modo, na sua relação com a realidade externa, observa aquilo que se repete, demarcando ocasiões específicas pelas quais consiga estruturar a sua trajetória no mundo. Do que acontece em seu próprio corpo (e notando outros corpos) estabelece conclusões a respeito da vida e de como e por que ela vem a ser. Ao ordenar o mundo pela observação e considerar que há corpos dos quais a vida surge (isto é, tem um começo), talvez tenha chegado a raciocinar que todas as coisas teriam a sua origem última em uma força ordenadora, viva e consciente. A vida social, conforme evolui e se especializa, empresta as imagens que vão tornando essa força cada vez mais parecida com as estruturas de poder criadas pelo homem: pai, rei, sacerdote, educador, etc. No entanto, diferente dos limites da condição transitória humana, essa força controla permanentemente a natureza, a vida de pequenos grupos, o destino de grandes impérios e, por fim, a história humana, compreendida (assim como a vida individual) entre uma origem e um fim.

Essas estruturas de poder não apenas fornecem as tintas com as quais se pinta esse poder transcendental (que pode se fragmentar em forças menores, conforme a cultura: ancestrais falecidos que ainda se comunicam, animais fantásticos, seres celestes, fantasmas, demônios e, mais modernamente, alienígenas), mas também são fundamentadas por ele: costumes, referenciais éticos e legislações elaborados pelas próprias sociedades são atribuídos originalmente à força primeva que os impõe à vontade dos indivíduos.

Não é de estranhar que culturas como a islâmica, tão distinta do secularismo ocidental, reverenciem avidamente tal poder, visto que é absolutamente necessário para manter coesa a própria organização das sociedades até as suas microestruturas. Admiramos o temor e a devoção desses irmãos nossos de humanidade e vemos que também o cristianismo compartilha dessa atitude em alguns contextos. Mas pergunto mais especificamente: isso é espiritualidade legítima? Em que medida não estamos presenciando a divindade como espelho da cultura? A divindade está além da cultura ou sempre esteve reduzida a ela? Alguém poderá dizer: mas a consciência de um deus sempre existiu. E eu, se me permitem, pergunto: qual deus? Mudam as culturas, mudam os deuses. Ainda um supostamente único deus é representado de maneiras distintas, conforme variam os grupos que o veneram. Se as culturas se tornam hegemônicas, o(s) seu(s) deus(es) do mesmo modo.

Será que há algo inscrito em nossa constituição humana desde sempre que poderia ser associado a um deus? Diria (provisoriamente) que talvez espiritualidade seja nada mais que relação com (e em) o mundo. Os deuses e as deusas, criá-los-íamos para representar essa relação, uma relação com o eu e com o outro que está diante de nós, presente em presença ou ausência.

A espiritualidade é o quê?