No dia 08 de fevereiro de 2010, enviei por e-mail o texto abaixo para o Richarles e o meu primo Marcos em resposta a um desejo expresso pelo primeiro de conversarmos mais sobre religião. Basicamente orientei-me pelo que ele escrevera no final da mensagem que remeteu para mim e o Marcos: "Rubinho, em termos de fé e igreja, assumi algumas idéias que me apareceram após refletir sobre um monte de coisas. Bem que me falaram um dia: Quer manter sua fé inabalada? Não faça faculdade!" Publico minha resposta a esses dois grandes amigos após fazer algumas correções.
Charlinho,
Isso que lhe falaram "um dia" (rsrs) é um equívoco bastante comum. Na minha opinião, por que há pessoas que acham que perderão a fé se forem estudar na universidade? Porque o fundamento da fé que essas pessoas têm encontra-se naquilo que é forma ou detalhe e não no essencial.
Explico: De acordo com a Bíblia, o mundo e o ser humano foram criados por Deus durante um período de sete dias. Todavia, desde o século XIX, a ciência vem desvendando os processos biológicos por meio dos quais a vida, em suas mais variadas formas, evoluiu no planeta. Além do mais, os estudos da geologia, da paleontologia e da astronomia mostram que o universo e o planeta passam por transformações constantes que se estendem por um período de mais ou menos 14 bilhões de anos (a Terra teria 4.5 bilhões).[1] Levou milênios até que o planeta adquirisse a forma que tem hoje, a vida explodisse em milhares de espécies diferentes e o ser humano surgisse sobre a terra (e houve várias espécies de hominídeos, por exemplo: Australopitecus afarensis, Homo erectus, Homo sapiens neanderthalensis, Homo sapiens sapiens).[2] A pergunta (equivocada) seria a seguinte: Qual dos dois está certo: a Bíblia ou a ciência?
Os textos bíblicos foram escritos durante um período de aproximadamente 1400 anos. Uma das passagens mais antigas que foram conservadas seria o cântico de Débora (Juízes 5), datado talvez do século XII a.C.[3] Os diferentes autores, fazendo registros da tradição oral de Israel, escreveram textos de certo modo independentes em uma variedade de gêneros literários (crônicas, hinos, provérbios, parábolas, contos, novelas, etc.) e fizeram-no para estabelecer as relações entre religiosidade(s) e identidade(s) social(ais). Ao longo do processo, alguns textos se perderam, outros receberam acréscimos, comentários ou tiveram parte do conteúdo removido ou corrigido de acordo com a perspectiva teológica de quem trabalhava com o texto.
Assim sendo, por exemplo, o livro de Gênesis possui dois relatos independentes e diferentes da criação do mundo: Gênesis, capítulo 1, versículo 1 ao capítulo 2, versículo 4, parte "a" ("Estas são as origens dos céus e da terra, quando foram criados") e Gênesis, capítulo 2, versículo 4, parte "b" ("No dia em que o SENHOR Deus fez a terra e os céus"), ao versículo 25. O primeiro descreve a criação como uma semana de trabalho que finaliza no descanso sabático e, assim, justifica a semana litúrgica judaica fazendo-a remontar ao "princípio", isto é, àquele momento que os chamados "mitos cosmogônicos" descrevem como de atividade dos deuses para dar origem àquilo que as sociedades que compõem essas narrativas reconhecem como norma. O segundo relato apresenta a criação como o surgimento de um oásis (jardim do Éden) no meio da terra seca após uma chuva. É curioso que, neste caso, o Deus de Israel é chamado pelo nome "Yahweh" (que geralmente aparece traduzido, por uma questão linguística que não vem ao caso, como SENHOR). E associa-se esse Deus à chuva e à fertilidade da terra, coisa que as populações mais primitivas da Palestina conheciam como obra de divindades locais, por exemplo, o deus Baal (cf. 1Reis 18.22-46).
Desse modo, a Bíblia não está interessada em relatar cientificamente o surgimento do universo e da vida. Trata-se de uma coletânea de registros (só posteriormente reunidos num único volume) de como o antigo Israel experimentou e compreendeu seu(s) Deus(es). E esses registros são feitos numa linguagem absolutamente enraizada no cotidiano daquelas populações: a linguagem da terra, da chuva, do culto, do mito. A maneira de compreender o universo mudou com o desenvolvimento científico moderno. A realidade não é mais constituída de três andares: os céus (morada dos deuses), a terra (morada dos homens) e o Xeol (morada dos mortos).[4] Sabemos que o nosso planeta é um entre milhares em nossa galáxia, que é uma entre bilhões no universo. Possuímos indícios de que a vida surgiu e desenvolveu-se gradativamente através de processos naturais de evolução. A maneira de "ler" a natureza hoje é outra, mas as indagações existenciais do ser humano permanecem. A ciência avança em demonstrar naturalmente o "como"; a fé pretende estabelecer o sentido, isto é, o "porquê".
Se a linguagem da Bíblia foi ultrapassada pela ciência, a experiência de Deus que ela testemunha recorrendo a variados encontros com o sagrado permanece necessária para a paz dos seres humanos consigo mesmos e com a natureza.
Um abraço, amigos!
Ruben
Notas:
[1] Para mais informações sobre o assunto, confira: http://wwo.uai.com.br/UAI/html/sessao_11/2009/10/26/em_noticia_interna,id_sessao=11&id_noticia=133416/em_noticia_interna.shtml. Acesso em 14/02/2010.
[2] Para mais informações sobre o assunto, confira: http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u358172.shtml. Acesso em 14/02/2010.
Charlinho,
Isso que lhe falaram "um dia" (rsrs) é um equívoco bastante comum. Na minha opinião, por que há pessoas que acham que perderão a fé se forem estudar na universidade? Porque o fundamento da fé que essas pessoas têm encontra-se naquilo que é forma ou detalhe e não no essencial.
Explico: De acordo com a Bíblia, o mundo e o ser humano foram criados por Deus durante um período de sete dias. Todavia, desde o século XIX, a ciência vem desvendando os processos biológicos por meio dos quais a vida, em suas mais variadas formas, evoluiu no planeta. Além do mais, os estudos da geologia, da paleontologia e da astronomia mostram que o universo e o planeta passam por transformações constantes que se estendem por um período de mais ou menos 14 bilhões de anos (a Terra teria 4.5 bilhões).[1] Levou milênios até que o planeta adquirisse a forma que tem hoje, a vida explodisse em milhares de espécies diferentes e o ser humano surgisse sobre a terra (e houve várias espécies de hominídeos, por exemplo: Australopitecus afarensis, Homo erectus, Homo sapiens neanderthalensis, Homo sapiens sapiens).[2] A pergunta (equivocada) seria a seguinte: Qual dos dois está certo: a Bíblia ou a ciência?
Os textos bíblicos foram escritos durante um período de aproximadamente 1400 anos. Uma das passagens mais antigas que foram conservadas seria o cântico de Débora (Juízes 5), datado talvez do século XII a.C.[3] Os diferentes autores, fazendo registros da tradição oral de Israel, escreveram textos de certo modo independentes em uma variedade de gêneros literários (crônicas, hinos, provérbios, parábolas, contos, novelas, etc.) e fizeram-no para estabelecer as relações entre religiosidade(s) e identidade(s) social(ais). Ao longo do processo, alguns textos se perderam, outros receberam acréscimos, comentários ou tiveram parte do conteúdo removido ou corrigido de acordo com a perspectiva teológica de quem trabalhava com o texto.
Assim sendo, por exemplo, o livro de Gênesis possui dois relatos independentes e diferentes da criação do mundo: Gênesis, capítulo 1, versículo 1 ao capítulo 2, versículo 4, parte "a" ("Estas são as origens dos céus e da terra, quando foram criados") e Gênesis, capítulo 2, versículo 4, parte "b" ("No dia em que o SENHOR Deus fez a terra e os céus"), ao versículo 25. O primeiro descreve a criação como uma semana de trabalho que finaliza no descanso sabático e, assim, justifica a semana litúrgica judaica fazendo-a remontar ao "princípio", isto é, àquele momento que os chamados "mitos cosmogônicos" descrevem como de atividade dos deuses para dar origem àquilo que as sociedades que compõem essas narrativas reconhecem como norma. O segundo relato apresenta a criação como o surgimento de um oásis (jardim do Éden) no meio da terra seca após uma chuva. É curioso que, neste caso, o Deus de Israel é chamado pelo nome "Yahweh" (que geralmente aparece traduzido, por uma questão linguística que não vem ao caso, como SENHOR). E associa-se esse Deus à chuva e à fertilidade da terra, coisa que as populações mais primitivas da Palestina conheciam como obra de divindades locais, por exemplo, o deus Baal (cf. 1Reis 18.22-46).
Desse modo, a Bíblia não está interessada em relatar cientificamente o surgimento do universo e da vida. Trata-se de uma coletânea de registros (só posteriormente reunidos num único volume) de como o antigo Israel experimentou e compreendeu seu(s) Deus(es). E esses registros são feitos numa linguagem absolutamente enraizada no cotidiano daquelas populações: a linguagem da terra, da chuva, do culto, do mito. A maneira de compreender o universo mudou com o desenvolvimento científico moderno. A realidade não é mais constituída de três andares: os céus (morada dos deuses), a terra (morada dos homens) e o Xeol (morada dos mortos).[4] Sabemos que o nosso planeta é um entre milhares em nossa galáxia, que é uma entre bilhões no universo. Possuímos indícios de que a vida surgiu e desenvolveu-se gradativamente através de processos naturais de evolução. A maneira de "ler" a natureza hoje é outra, mas as indagações existenciais do ser humano permanecem. A ciência avança em demonstrar naturalmente o "como"; a fé pretende estabelecer o sentido, isto é, o "porquê".
Se a linguagem da Bíblia foi ultrapassada pela ciência, a experiência de Deus que ela testemunha recorrendo a variados encontros com o sagrado permanece necessária para a paz dos seres humanos consigo mesmos e com a natureza.
Um abraço, amigos!
Ruben
Notas:
[1] Para mais informações sobre o assunto, confira: http://wwo.uai.com.br/UAI/html/sessao_11/2009/10/26/em_noticia_interna,id_sessao=11&id_noticia=133416/em_noticia_interna.shtml. Acesso em 14/02/2010.
[2] Para mais informações sobre o assunto, confira: http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u358172.shtml. Acesso em 14/02/2010.
[3] Para mais informações sobre o assunto, confira: http://www.bibliacatolica.com.br/historia_biblia/3.php. Acesso em 14/02/2010. http://www.metodista.br/ppc/caminhando/caminhando-16/o-conceito-de-justica-no-antigo-testamento-a-partir-de-juizes-5-9-12. Acesso em 14/02/2010.
[4] Para mais informações sobre o assunto, confira o verbete “Mundo” em http://www.bibliacatolica.com.br/dicionario/12.php. Acesso em 14/02/2010.
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