O texto a seguir, de 08 de setembro de 2008, é uma contribuição para uma "rodada" do café teológico virtual do qual participaram: Carla Saueressig, Marlova Schneider, Dionata Oliveira, Vanderlei Schneider, Renato Jover, Ruben Marcelino, Marcos Romão Vichi e Israel. Publicação na íntegra.
Olá para todos! A iniciativa da Carla de começar esse café teológico merece ser parabenizada, já que esse diálogo, mesmo que ao redor de uma mesa virtual (por enquanto), pode aproximar os participantes, os quais terão acesso a diversas perspectivas sobre os mais variados assuntos relacionados à espiritualidade.
Li todas as respostas dadas até aqui e notei que, seguindo o fio da mensagem da Carla, o amor e o respeito à diferença receberam o principal destaque. Comentários sobre a prática pessoal do cristianismo também ocuparam lugar na fala dos interlocutores.
O que é a espiritualidade? Ainda estou tentando descobrir. Será amar e respeitar o próximo? Ou orientar a própria a vida a partir de (e em direção a) um referencial estabelecido a priori, através de um comportamento regido ritualística e disciplinadamente pela observância de regras? Ou as duas coisas? Ou nem isso nem aquilo?.
Não há dúvida de que exemplos como o desse rapaz com o qual a Carla conversou podem impressionar. Afinal, religioso ou não, o ser humano parece ter uma necessidade intrínseca de ordenar a realidade à sua volta, de modo a vencer o caos externo com o qual se defronta e superar a aparente falta de sentido incontornavelmente percebida na luta pela sobrevivência e na morte. Desse modo, na sua relação com a realidade externa, observa aquilo que se repete, demarcando ocasiões específicas pelas quais consiga estruturar a sua trajetória no mundo. Do que acontece em seu próprio corpo (e notando outros corpos) estabelece conclusões a respeito da vida e de como e por que ela vem a ser. Ao ordenar o mundo pela observação e considerar que há corpos dos quais a vida surge (isto é, tem um começo), talvez tenha chegado a raciocinar que todas as coisas teriam a sua origem última em uma força ordenadora, viva e consciente. A vida social, conforme evolui e se especializa, empresta as imagens que vão tornando essa força cada vez mais parecida com as estruturas de poder criadas pelo homem: pai, rei, sacerdote, educador, etc. No entanto, diferente dos limites da condição transitória humana, essa força controla permanentemente a natureza, a vida de pequenos grupos, o destino de grandes impérios e, por fim, a história humana, compreendida (assim como a vida individual) entre uma origem e um fim.
Essas estruturas de poder não apenas fornecem as tintas com as quais se pinta esse poder transcendental (que pode se fragmentar em forças menores, conforme a cultura: ancestrais falecidos que ainda se comunicam, animais fantásticos, seres celestes, fantasmas, demônios e, mais modernamente, alienígenas), mas também são fundamentadas por ele: costumes, referenciais éticos e legislações elaborados pelas próprias sociedades são atribuídos originalmente à força primeva que os impõe à vontade dos indivíduos.
Não é de estranhar que culturas como a islâmica, tão distinta do secularismo ocidental, reverenciem avidamente tal poder, visto que é absolutamente necessário para manter coesa a própria organização das sociedades até as suas microestruturas. Admiramos o temor e a devoção desses irmãos nossos de humanidade e vemos que também o cristianismo compartilha dessa atitude em alguns contextos. Mas pergunto mais especificamente: isso é espiritualidade legítima? Em que medida não estamos presenciando a divindade como espelho da cultura? A divindade está além da cultura ou sempre esteve reduzida a ela? Alguém poderá dizer: mas a consciência de um deus sempre existiu. E eu, se me permitem, pergunto: qual deus? Mudam as culturas, mudam os deuses. Ainda um supostamente único deus é representado de maneiras distintas, conforme variam os grupos que o veneram. Se as culturas se tornam hegemônicas, o(s) seu(s) deus(es) do mesmo modo.
Será que há algo inscrito em nossa constituição humana desde sempre que poderia ser associado a um deus? Diria (provisoriamente) que talvez espiritualidade seja nada mais que relação com (e em) o mundo. Os deuses e as deusas, criá-los-íamos para representar essa relação, uma relação com o eu e com o outro que está diante de nós, presente em presença ou ausência.
A espiritualidade é o quê?