"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

domingo, dezembro 30, 2007

2008, tempo e Deus


Prestes a entrar o novo ano, “tempo” é uma idéia que, com freqüência, ocorre-nos. “Será que dará tempo de concluir essa atividade antes de acabar o ano?” “Quanto tempo precisarei investir para realizar tal projeto no ano que vem?” “Nossa! Falta pouco tempo para o réveillon!” Pensando ser assim, resolvi comentar a palavra “tempo” a partir da literatura bíblica, especificamente o livro de Eclesiastes.


No versículo 1 do capítulo 3, duas palavras hebraicas que podem ser traduzidas por “tempo” – zeman1 [1] e et [2] – são usadas em paralelo, uma definindo a outra: a primeira, zeman, “tempo determinado”2, define a segunda, et, “tempo”.3


Para tudo há um tempo determinado;

há, para todo desejo, um tempo sob os ceús. [3]


A idéia sugerida é a de ocasião própria. É significativo que a versão grega traduza et por καιρóς (kairós), “época”, “tempo apropriado”.


Nos sete versículos seguintes são justapostas, sempre com a palavra et, séries de circunstâncias opostas. Parece que se quer indicar com isso que as condições de possibilidade de cada uma delas impõem que cada qual possua uma ocasião própria de realização.


Importante chamar a atenção aqui para algumas circunstâncias, tais como as que aparecem no versículo 8a: Tempo para amar e tempo para odiar [4]. Por mais que a raiva, e mesmo o ódio, seja uma reação natural do ser humano em face de certas situações, não é razoável que tal sentimento dure indefinidamente. Poderíamos interpretar a menção do amor em primeiro lugar como intenção de destacar uma virtude preferível ao ódio e limite necessário para este. A raiva, ou o ódio, possui um tempo, pelo que deve ser contrabalançada pelo amor. Oportuno é trazer à memória Jesus de Nazaré: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; desse modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos”4 (Mateus 5.43-45).


Este tempo, do qual fala o autor de Eclesiastes, por conseguinte, assinala o momento adequado para se fazer cada coisa durante a vida. Isso significa que, em nosso poder e vontade, haverá sempre um limite. A existência e o tempo são maiores do que nós. Quanto mais cedo se compreender isso, menos tempo se gastará procurando fazer aquilo que está fora do alcance, visto que ainda esteja distante o tempo de fazê-lo.


No versículo 11 do mesmo capítulo, diz-se que há beleza quando as coisas acontecem nas ocasiões oportunas para as quais Deus as fez.


Tudo ele faz belo em seu tempo;

também dá ao coração deles a noção de duração do tempo,

sem que o ser humano descubra a obra que Deus faz

desde o princípio até o fim. [5]


A noção de duração do tempo, da qual Deus dotou o entendimento humano, impõe à pessoa que, embora seja desejável que se lance em direção a essa reflexão, ela não poderá compreender tudo o que Deus faz. A palavra olam [6], nas acepções possíveis de “antigüidade”, “perpetuidade”, “eternidade”, poderia estar sugerindo, ao mesmo tempo, a idéia de tempo decorrido, de tempo que ainda resta e, talvez, de tempo psicológico, no âmbito do qual o ser humano medita sobre a sua experiência no mundo.


Há uma nítida relação entre discernir o tempo de que dispomos para viver e discernir a incognoscibilidade de Deus no que se refere ao nosso entendimento. Em outras palavras, o nosso curto tempo de vida é absolutamente desproporcional ao que há para ser conhecido em Deus. A noção de tempo que temos, se realmente levada a sério, obriga-nos a admitir que Deus permanecerá um contínuo mistério para nós, pois dele sempre saberemos pouquíssimo. Não foi Jesus, segundo o autor do livro de Atos dos Apóstolos, quem disse aos seus seguidores que não lhes competia “conhecer os tempos e os momentos que o Pai fixou com sua própria autoridade”5 (1.7)?


O que se pode concluir daí? Quando pensamos nosso tempo e o que faremos com ele, é necessário reverenciar Deus, cujos ser e obra são por demais elevados para nós, porém perpassam continuamente nossa própria existência para nos abençoar. Reverenciar Deus é recolher nosso ínfimo conhecimento à nossa condição temporária e abrir-se para o amor e a solidariedade, virtudes que, por Jesus de Nazaré, revelaram-se eternas.


Feliz 2008!


Notas:


1 A palavra zeman é um empréstimo lingüístico do aramaico (HARRIS, R. Laird; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1141).


2 Ibid., p. 396.


3 Ibid., 1141.


4 A Bíblia de Jerusalém (1985), p. 1847.


5 Ibid., p. 2046.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista. São Paulo: Paulus, 1985. 2366 p.



ELLIGER, Karl; RUDOLPH, Wilhelm. Biblia Hebraica Stuttgartensia. 4. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1990. 1574 p.


HARRIS, R. Laird; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. Trad. Márcio Loureiro Redondo, Luiz A. T. Sayão e Carlos Osvaldo C. Pinto. São Paulo: Vida Nova, 1998. 1789 p.


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