"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

sábado, novembro 04, 2006

Sobre maus tratos aos animais.

Ao passar pelas ruas, já me deparei com animais em situações lamentáveis e a minha pergunta, sempre acompanhada de uma profunda angústia existencial, era: Qual o sentido disso? A gente sente um misto de revolta e tristeza, pensando que o animal sofre e sem entender por quê. Mas sabe o que mais me aborrece e acho o cúmulo da contradição? Pessoas que se dizem cristãs e que tratam mal os animais.

A pequena história de Jonas é emblemática em relação a essa questão. O livro termina com YHWH dizendo a um Jonas contrariado o seguinte (4.10-11, BJ):

"Tu tens pena da mamoneira, que não te custou trabalho e que não fizeste crescer, que em uma noite existiu e em uma noite pereceu. E eu não terei piedade de Nínive, a grande cidade, onde há mais de cento e vinte mil homens, que não distinguem entre direita e esquerda, assim como muitos animais?"

YHWH tem piedade dos animais! E como é que gente que confessa a graça de Jesus, o enviado de YHWH, pode ser capaz de agir com crueldade e cinismo para com os animais? Segundo o Evangelho de Mateus, Jesus afirmara que o Pai celeste alimenta as aves do céu (6.26). Insistimos que o ser humano é imagem e semelhança de Deus. De fato, a antropologia bíblica coloca a coisa nesses termos (Gn 1.27). Todavia, essa declaração pode ser, contra nós, uma condenação, na medida em que optamos pela dessemelhança divina ao maltratar as outras criaturas do Senhor.

Para aquele(a) que é cristã(o), mas por alguma razão está acostumado(a) a usar de violência gratuita contra os animais, digo com toda a franqueza: ESSA PESSOA ESTÁ NEGANDO O CRISTIANISMO! E não adianta vir com a história de que se garante é na "graça" de Deus. Declarações, na fé cristã, não valem NADA se não vierem acompanhadas do devido compromisso interior QUE SE EXPRESSA NO EXTERIOR: "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estais cheios de rapina e de intemperança! Fariseu cego, limpa primeiro o interior do copo para que também o exterior fique limpo!" (Mt 23.25-26)

Na carta de Tiago (2.24) se diz de modo bem claro: "Estais vendo que o homem é justificado pelas obras e não simplesmente pela fé". Sugiro a leitura de Tiago 2.14-26.

Ao dizer que não me convence alguém dizer que se garante na graça de Deus, levo em consideração um eventual interlocutor que, empunhando esse discurso, queira justificar uma atitude inconseqüente em relação ao trato com os animais. Sinceramente, se uma pessoa cristã maltrata os animais, mas considera que a salvação pessoal é outra questão, que absolutamente não passa por um sentimento de indignação e uma postura diferente em relação à vida das diversas espécies de animais e vegetais que habitam o planeta, penso que ela possui uma deficiência gravíssima em sua compreensão tanto das exigências teológicas relacionadas à criação quanto à questão da salvação. O discurso de justificação pela fé somente não justifica nunca qualquer atentado arbitrário contra qualquer forma de vida. Pelo contrário, justificação pela fé significa que Deus aceita incondicionalmente o ser humano e não exige deste menos do que a aceitação incondicional da vida alheia, seja humana, seja animal. Paulo diz que o destino da criação está relacionado à manifestação dos filhos de Deus (Rm 8.19-23). Não é possível, pois, que passe em branco a nossa responsabilidade como cristãos de demonstrar, sim, pelas nossas obras, a presença de Deus no mundo e o seu amor em relação a toda a sua criação. Sabemos que muitas espécies animais e vegetais, além da própria atmosfera do planeta, sofrem as agressões de sistemas políticos e econômicos difundidos ao redor do globo, cujos representantes não se importam com nada que não seja a consecução de seus próprios interesses. Como o profeta João, que lutou contra semelhante sistema de alienação - os cristãos destinatários do Apocalipse estavam sendo perseguidos por um sistema ideológico preocupado exclusivamente com a manutenção da opressão representada pelo imperialismo romano -, é necessário que concretizemos a manifestação de Deus no mundo por meio de atitudes diferenciadas que promovam a vida, a dignidade e o respeito para com todas as criaturas. Em termos práticos (e por isso citei Tiago), que valor tem uma fé que não muda em nada as condições de existência aqui? Por mais espiritual que seja o discurso da justificação, ele não pode ficar restrito a uma perspectiva vertical e escatológica, a respeito da qual, inclusive, no que se refere à sua consecução, não podemos fazer absolutamente nada. O que deve acontecer quando o reinado de Deus se estabelecer definitivamente é de competência exclusiva de Deus. Todavia, o que acontece em nossa atual dimensão de existência diz respeito principalmente a mim. Creio, sim, que Deus está ao meu lado para me ajudar. Porém, os desafios teológicos e práticos que a realidade social contemporânea põe, põe-nos diante de mim, não diante de Deus. Sou desafiado por Deus para resolvê-los com ele ao meu lado, mas quem tem de se posicionar sou eu.

Como os homens se aproximam de Deus? Acredito que os textos bíblicos sustentem uma realidade essencialmente misteriosa, mas que admite tanto que Deus os atraia como que eles respondam fazendo uso de suas faculdades de cognição e volição. Os textos bíblicos, a meu ver, estão preocupados em testemunhar a intenção e o poder de Deus de salvar, como também querem desafiar o ser humano a se posicionar, a um só tempo, diante de Deus, de si mesmo e do próximo. "Ninguém vem a mim se o Pai não o trouxer", mas também "Retornem (ou "mudem a sua mente") porque o reinado de Deus está próximo".

Ao citar Tiago, faço-o para destacar que a espiritualidade bíblica não separa fé e obras. A ponto desse autor indagar: "Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a subsistência de cada dia, e alguém dentre vós lhes disser: 'Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos', e não lhes der o necessário para a sua manutenção, que proveito haverá nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, está morta em seu isolamento" (Tg 2.14-17, BJ). Logo, a fé só demonstra a sua eficácia como salvadora se ela se concretiza em ações que beneficiem o necessitado; em outras palavras, se ela mesma, por meu intermédio, uma vez desafiado inicialmente por Deus, salva aqueles que estão "perdidos", seja qual for a qualidade de sua desorientação. Paulo percebeu a indissociabilidade de fé e obras, e também João. O primeiro considera que a graça de Deus significa que "fomos criados em Cristo Jesus para as boas obras que Deus já antes tinha preparado para que nelas andássemos" (Ef 2.10, BJ). O segundo afirma categoricamente: “Se alguém disser: 'Amo a Deus', mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar" (1Jo 4.20, BJ). Hebreus 11, penso, poderia ser sintetizado na fórmula: "Pela fé, fizeram..." E Jesus, "(...) que passou fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo diabo, porque Deus estava com ele" (At 10.38, BJ), segundo os sinóticos, ensinou o amor estendido ao necessitado como caminho da felicidade e certeza de fé: "Ao dares um almoço ou jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos; para que não te convidem por sua vez e te retribuam do mesmo modo. Pelo contrário, quando deres uma festa, chama os pobres, estropiados, coxos, cegos; feliz serás, então, porque eles não têm com que te retribuir. Serás, porém, recompensado na ressurreição dos justos" (Lc 14.12-14, BJ). Citei aquela outra passagem, de Mt 23.25-26, para mostrar também essa indissociabilidade. Não se diz “limpe-se o interior do copo e do prato”, mas sim, “limpe-se o interior do copo e do prato, para que o exterior também fique limpo”. Salvar as baleias e os pandas pode não acrescentar nada à salvação do ponto de vista vertical ou metafísico, mas do ponto de vista horizontal ou histórico é concretização da esperança à qual a fé se refere, esperança da qual a fé não pode ser separada. A salvação de Deus, conforme entendo a Bíblia, é um cruzamento das linhas vertical e horizontal, nas quais consiste a experiência religiosa humana. E fé só vertical ou metafísica não muda realidade nenhuma. De igual modo, fé simplesmente horizontal ou histórica, mais dia menos dia, vai desagüar no desespero.

Em relação ao fato de que há cristãos que, lamentavelmente, maltratam animais (e pessoas), já vi gente citar tradições medievais e lendas absurdas para justificar maus tratos. Está mais do que na hora dos cristãos romperem com esse tipo de coisa, que nunca fez bem algum em toda a história do cristianismo, e assumirem um compromisso incondicional com a vida.

Não considero que a graça de Deus não baste. Basta que eu "pense" para perceber que ou Deus me aceita incondicionalmente ou eu estou perdido. Quero enfatizar, porém, é que um discurso sobre a graça de Deus não faz sentido se essa graça não se traduz em atitude graciosa do ser humano para com o ser humano. Conforme disse acima, a respeito do que Deus vai fazer comigo na, digamos, "consumação", é algo sobre o qual, absolutamente, eu não tenho domínio nenhum. Nem mesmo posso provar racionalmente que haverá uma consumação. Diante da proclamação bíblica, só tenho duas opções: arriscar-me, aceitando-a até as últimas conseqüências, ou arriscar-me, rejeitando-a, com todas as implicações que isso venha a ter. Entretanto, posso e devo, aqui, lutar para que as coisas se tornem melhores do que são. Não acho que Deus requeira menos de mim.

Em relação ao nosso papel no mundo enquanto cristãos, creio que devemos pensar como os reformadores: "Que Deus me ajude!"

4 comentários:

Ruben Marcelino disse...
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Ruben Marcelino disse...
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Ruben Marcelino disse...

É verdade, Fábio. O ideal de felicidade atinge inclusive nossos sermões e a própria tradução da Bíblia. É preciso esclarecer que, com "ideal de felicidade", refiro-me não à fruição de momentos de felicidade absolutamente legítimos e necessários, mas à ilusão de querer excluir da vida o sofrimento pelo auto-convencimento de que uma felicidade perene é possível.

A palavra "ashrey" que abre a coleção dos Salmos não significa "feliz" ou "bem-aventurado", porém indica uma marcha para frente na estrada da Lei de YHWH, único ideal de vida para o judeu. O fim dessa estrada não é outro que não o próprio YHWH.

Muito obrigado por seu comentário e amizade.

Escreva sempre!

Anônimo disse...

Parabéns pelo trabalho e obrigada pela boa leitura e reflexão.

Natislima