Qohélet [1] é o termo hebraico correspondente ao grego Ekklesiastes. Tanto um como outro designam provavelmente uma pessoa que se dirige a uma assembléia ou grupo de pessoas. Assim, Jerônimo (c. 340 – 420), em sua versão da Bíblia para o latim, traduziu a palavra para “contionator” (orador popular). Mas Martinho Lutero (1483 – 1546), ao verter o termo hebraico para o alemão (“prediger” = “pregador”), restringiu-o ao ambiente eclesiástico (obviamente mais adequado ao séc. XVI do que ao contexto histórico em que foi produzida a obra) [2]. Um dos epílogos do livro parece indicar o Qohélet como um colecionador de provérbios (12.9bβ), além de um mestre do povo (12.9bα) [3].
A palavra “qohélet” (particípio feminino da raiz qahal, “reunir em assembléia”), da forma como é utilizada ao longo do livro [4], parece ser um nome próprio, conforme acontece com algumas formas paralelas encontradas em Ed 2.55, 57; Ne 7.57, 59, originalmente designativos de funções, mas agora utilizados como nomes próprios. O que coloca uma dificuldade em relação a essa hipótese é o fato da palavra vir precedida de um artigo em 12.8 [e, talvez, 7.27] [5] (haqqohélet), o que indicaria estar se referindo a uma função [6].
Pelo título do livro (1.1) e uma espécie de resenha autobiográfica (1.2 - 2.11), dá-se a entender que quem fala é Salomão (cf. 1Rs 5.1-14; 10.1 - 11.1). A tradução judaica antiga sustentava que os livros de Cântico dos cânticos, Provérbios e Eclesiastes representariam três fases da vida do filho de Davi: juventude (ênfase no amor), maturidade (ênfase em problemas práticos) e velhice (ênfase na fugacidade da vida) [7]. Muitos pesquisadores atualmente, entretanto, baseando-se na linguagem e na estrutura do livro, consideram difícil atribuir ao rei sábio do séc. X a.C. a autoria [8]. Talvez a auto-apresentação de Qohélet como Salomão sirva à apreciação do tema da obra: o ser humano não obtém a felicidade acumulando riquezas, executando grandes empreendimentos ou colecionando paixões amorosas para si. A felicidade se experimenta no desfrute daquilo que o trabalho pode proporcionar (2.24; 3.12-13; etc.) em solidariedade e companhia (4.7-12; 9.7-9), pois Deus, de quem vem tais dons, agrada-se disso (2.24; 9.7).
Qohélet é um crítico da sabedoria do seu tempo. Para ele, a observação da vida apenas permite concluir que não se pode desvendar como Deus realiza a sua obra (3.11; 8.16-17). A doutrina da retribuição - para os que fazem o bem sucede o bem e para os que fazem o mal o contrário - não se verifica sempre na prática (8.10-14). Qohélet tem consciência da distância que separa o ser humano e Deus (5.1[2]). Para ele Deus tem poder sobre as obras humanas e não se deixa enganar com palavras vazias (5.3[4]-5[6]). Qohélet demonstra a sua reverência por Deus quando o apresenta como o insondável, cuja obra ninguém conhece (11.5), o criador do homem e fonte da retidão (7.29), doador e retomador do sopro vital dos seres vivos (3.18-21; 12.7), requerente das promessas que lhe fazem (5.3[4]-5[6]).
Notas:
[1] Alguns autores preferem a grafia “Coélet”.
[2] LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet, p. 430.
[3] É geralmente reconhecido que a obra possui dois epílogos distintos não escritos por Qohélet. Cf. Ibid, p. 413-14.
[4] A palavra é utilizada sete vezes: 1.1, 2, 12; 7.27; 12.8, 9, 10.
[5] O aparato crítico da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, tomando por base 12.8 e o texto grego – eipen ró ekklesiastés, “disse o Eclesiastes” – propõe como possibilidade de leitura, além de ’amrah qohélet, “disse Qohélet” (com o verbo na forma feminina), ’amar haqqohélet, “disse o Qohélet” (com o verbo na forma masculina).
[6] Embora considere que o termo Qohélet se refere a um homem, Fohrer apresenta a tradução aproximada “aquela que reúne”. FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento, p. 499. Para Sandro e Ana Maria Rizzante Gallazzi, “Qohélet nada mais é do que uma pessoa que está presente na reunião. [...] É simplesmente alguém que está lá, que está presente. Não é o pregador, não tem tarefas na reunião. É um simples membro, justamente o que seria uma ‘mulher’ na sinagoga judaica. [...] Parece-nos correto e gostamos de pensar em Qohelet como uma mulher, certamente não a única, descritiva das e dos ‘demais’, do ‘povo em geral’, das que não são autoridades nem civis, nem militares, nem religiosas. Uma ‘qohelet ninguém’, mas que um dia cria coragem e fala!” GALLAZZI, Sandro e Ana Maria Rizzante. O teste dos olhos, o teste da casa, o teste do túmulo (Uma chave de leitura do livro de Qohelet). In: REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA LATINO-AMERICANA, n. 14 – 1993/1, p. 55. Líndez cita autores para os quais Qohélet personifica a Sabedoria ou algum tipo de associação (a academia ou a assembléia). LÍNDEZ, José Vílchez. Op. Cit., p. 427, nota 20.
[7] LÍNDEZ, José Vílchez. Op. Cit., p. 12, nota 2.
[8] Cf. Ibid., p. 11-14.
Referências Bibliográficas:
BIBLIA HEBRAICA STUTTGARTENSIA. 4. ed. Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart: Stuttgart, 1990. 1574 p.
FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. D. Mateus Rocha. São Paulo: Paulinas, 1977. 825 p. 2 vol.
LÍNDEZ, José Vílchez. Eclesiastes ou Qohélet. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1990. 510 p.
RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart: Stuttgart, 1979. Volume único.
REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA LATINO-AMERICANA, N. 14 – 1993/1. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1993.
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