"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

domingo, agosto 02, 2009

Homem de Deus?

No dia 22 de abril, minha tia Angélica mandou-me o recado que transcrevo abaixo:

Rubinho, seja sempre um homem de Deus. Você, pequenino, gostava de dizer: Bem-aventurado o varão que põe no Senhor a sua confiança. Pratique sempre essa verdade.

A citação é do Salmo 40.5(4) [cf. Jeremias 17.7].

Sabe o que é curioso? Eu não me lembro de ter dito isso. Nada fora do normal. Eu era uma criança. Todavia, essa "revelação" causou-me um certo impacto. Afinal, vai já muito tempo e eu mudei tanto...

Em minha ingenuidade infantil (quando para a gente tudo é simples), essas palavras deviam soar naturalmente, como uma verdade que não precisava ser demonstrada. Talvez eu nem mesmo me preocupasse com que esses dizeres viessem acompanhados de uma verificação posterior, a famosa "experiência de fé", cuja concretização deveria ser objeto de testemunho público. Na certa, "Bem-aventurado o varão que põe no Senhor a sua confiança" era tão tranquilo para mim quanto sair a brincar, que é o que eu provavelmente fui fazer logo após ter recitado o versículo para a minha tia.

É engraçado que eu fui crescendo e Deus se tornando algo cada vez mais difícil. Sim, eu conheço bastante (embora sempre insuficientemente) a Bíblia, já fiz jornadas de oração e acreditei em tantas coisas. Ouvi vários sermões, uns bons, outros ruins, porém que, geralmente, sinalizavam que continuamente faltava algo. Em mim, no mundo, na existência.

Aos poucos, também por meus estudos e observações pessoais, ia possuindo conteúdo de mais e segurança de menos. O que venho sabendo é de uma pequenez infinitesimal, porém Deus foi tornando-se uma crescente incógnita e a espiritualidade um quebra-cabeças. Deus se expressa através de uma única religião? Há destino? Por que as pessoas são boas "e" más? Como Deus pode permanecer impassível perante o sofrimento no universo? O ser humano dotado de consciência e liberdade não é um risco demasiadamente alto? A transitoriedade decorrente da contínua transformação da matéria não dá a impressão de que, por mais elevado que seja o grau de nossa inserção no mundo, somos apenas como plástico, papel, restos orgânicos ou latinhas de refrigerante dentro de uma astronômica usina de reciclagem?

Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre.
Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir.
O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol.

(Eclesiastes 1.4, 8-9) [1]

É evidente a falta de algo. "É o pecado original que faz isso", dirão alguns. Acontece que justamente é o pecado, o mal, a decrepitude, a impotência que parece representarem o que há de mais "original" em nós. Como começou tudo isso? Arriscaria que, enquanto intenção, começou, tragicamente, com o surgimento da faculdade da consciência.

A consciência, todavia, anda inquieta com sua própria condição, uma vez que a bondade e a felicidade ela também é capaz de experimentar e expressar. Mas por que tais coisas não são perenes? Por que hoje somos benevolência e amanhã malevolência?

Aconselhou-me minha tia a ser sempre um homem de Deus. Se intuo que Deus criou o mundo, estou incluído nessa criação e, por isso, não há como deixar de ser um homem "de Deus". Por outro lado, sempre um "homem de Deus" tal quais as exigências da fé judaico-cristã sinto que há de envolver continuamente a devoção mas também a crítica dos pressupostos de minha crença: Deus revelou-se ao ser humano porque este, sendo pecador, precisa ser salvo.

A revelação (que não é exclusividade do Judaísmo e do Cristianismo) é um fenômeno, isto é, dá-se pela percepção humana da realidade do sagrado. Desnecessário dizer que a ideia de que a pessoa apenas percebe porque Deus tomou a iniciativa já está incluída na compreensão mesma dessa experiência. Em outras palavras, integra o acontecimento da revelação (que é sempre biopsicoespiritual) já tornado "discurso", discurso da fé. E como a fé é atividade humana e se traduz em linguagem, será historicamente condicionada por esta linguagem, visto que toda a interação do ser humano com o mundo é linguagem.

As "fés" testemunhadas pelos livros canônicos da Bíblia são quadros históricos somente possíveis e compreensíveis naqueles momentos históricos em que se produziram os testemunhos. As linguagens bíblicas são linguagens próprias daquelas circunstâncias históricas. Algo dessas expressões filosófico-linguísticas tornou-se padrão "técnico" de discurso das espiritualidades decorrentes ao longo dos séculos: Deus Pai; Cristo; céu e terra; Reinado de Deus; corpo, alma e espírito; predestinação; Espírito Santo; diabo; anjos; Escrituras; etc.

De que modo compreender, à luz do conhecimento cada vez mais extenso sobre a natureza (e "revelador" de nosso insistente desconhecimento) e da pluralidade de formas e cosmovisões filosóficas e religiosas, a proposta cristã que se estabeleceu no Ocidente? E que dizer dos cristianismos que se perderam (gnósticos, ebionitas, docetas, etc.)? Os conceitos comunicados pelas expressões filosófico-linguísticas supracitadas são capazes de dar conta das questões colocadas pelo mundo moderno? Dizia Drummond que, por trás da porta, a Verdade se compunha de metades diferentes umas das outras, por cujas belezas só era possível optar. [2] Que espiritualidade(s) responderá(ão) a um mundo (parece) irrevogavelmente percebido como um conjunto de "meias verdades" não coincidentes?

Segundo a Bíblia Hebraica, o homem de Deus que viera de Judá a Betel, visto que falhara, o leão encontrou e matou (1Reis 13.21-24). Se toda linguagem é metafórica, já que estabelece a "comparação" como mecanismo de compreensão da(s) realidade(s), tal narrativa comporta alguma razoabilidade dentro da era da física quântica, da astronomia, das pesquisas da evolução das espécies, da engenharia genética, do "livre-arbítrio" individual e da diversidade de pensamentos? Nas esquinas do século XXI, o homem de Deus e o leão ainda se encontram, mesmo que pacificamente?

Notas:

[1] Almeida Revista e Atualizada.

[2] http://www.memoriaviva.com.br/drummond/poema072.htm

Um comentário:

Pedro Grabois disse...

Ruben,
que reflexão bonita... essas questões fazem parte da espiritualidade...
eu acredito que a fé, a espiritualidade, a religião tem que dar espaço pra questões desse tipo!

Você foi alguém muito importante na minha caminhada de fé e espiritualidade.

Pena agora você estar longe!
Que Deus continue te abençoando com inquietações e perguntas sinceras para as quais não há respostas-prontas!

Um grande abraço,
Pedro