VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. 464 p.
A obra está dividida em duas partes, as quais, embora haja continuidade entre elas, diferem no foco. A primeira parte inscreve a cidade fictícia de Antares no cenário político brasileiro desde a primeira metade do século XIX até a década de 1960; a segunda narra o incidente propriamente dito que dá o título à obra.
“Antares”, a primeira parte, com 79 capítulos, prepara o leitor para a narração do incidente na segunda parte. O narrador expõe deste modo o plano de obra:
Melhor será contar primeiro, de maneira tão sucinta e imparcial quanto possível, a história de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma idéia mais clara do palco, do cenário e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaria, desse drama talvez inédito nos anais da espécie humana. (Capítulo 1, p. 10)
É nítida a ironia do fragmento, já que a comparsaria é o elemento fundamental (e nada inédito) de articulação da história, pois dá forma concreta às manobras que vinculam personalidades antarenses de prestígio aos movimentos da política e da economia nacional e sustenta a farsa orquestrada por essas mesmas personalidades a fim de encobrir-lhes as imoralidades denunciadas pelo incidente.
O leitor é inicialmente apresentado às duas principais famílias de Antares, os Vacarianos e os Campolargos, cuja rixa mortal marca a história da cidade até meados da década de 1920, época em que Getúlio Vargas, então deputado federal do Partido Republicano pelo Estado do Rio Grande do Sul, propõe a paz entre elas.
Comunidade da região que abriga os Sete Povos das Missões (São Francisco de Borja, São Nicolau, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Miguel Arcanjo, São Luís Gonzaga e Santo Ângelo Custódio), a noroeste do Rio Grande do Sul e próxima à fronteira com a Argentina, Antares – outrora Povinho da Caveira – era “um lugarejo pertencente à comarca de São Borja, [...] formado por uma escassa dúzia de ranchos pobres, perto da barranca do rio” (Capítulo 2, p. 11). Segundo o narrador, a descrição é tomada da obra de um naturalista francês, Gaston Gontran d’Auberville, que cruza o rio Uruguai e chega a esse povoado entre 1830 e 1831. O cientista narra o seu encontro com o proprietário das terras, Francisco Vacariano. Em uma noite, quando o francês lhe mostra a estrela Antares, “Chico” Vacariano – para quem a palavra significaria “lugar onde existem muitas antas” – considera-o um “Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da Caveira” (Capítulo 3, p. 14). Outro documento histórico, fornecido pelo narrador, é uma carta escrita em 1832 por um missionário católico argentino, Padre Juan Bautista Otero, o qual relata ao seu superior como obtivera permissão do dono das terras de Povinho da Caveira, Francisco Bacariano, para fazer casamentos e batizados.
Após situar Francisco Vacariano no contexto da Guerra dos Farrapos (1835 – 1845), em que fazia um jogo duplo entre revolucionários republicanos e tropas imperiais que favorecesse a manutenção de suas terras, e da elevação do Povinho da Caveira a vila em 1853, quando recebe oficialmente o nome de Antares, o narrador conta, no capítulo 6, a origem de sua rivalidade com Anacleto Campolargo, criador de gado que decide comprar terras nas proximidades por volta de 1860. Desse ponto em diante, o leitor é conduzido pelos embates sangrentos entre as duas famílias que atravessam momentos políticos importantes da História do Brasil – a Guerra do Paraguai (1864 – 1870), a assinatura da Lei Áurea (1888), a proclamação da República (1889) e a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893 – 1895). As inovações científicas do final do século XIX e princípio do XX – as estradas de ferro, o telefone, a luz elétrica e o automóvel – também servirão de pretexto para as rusgas entre os Vacarianos e os Campolargos.
As boas relações entre os representantes dos dois principais clãs de Antares, após a intervenção do “Homem de São Borja”, ocuparão a maior extensão da primeira parte da obra (do capítulo 24 ao 79), concentradas principalmente em torno do patriarca dos Vacarianos, Tibério, e da matrona dos Campolargos, Quitéria ou Dona Quita. Tanto um como a outra surgem como enérgicos analistas (e ativistas) políticos entre as turbulentas décadas de 1930 e 1960. É importante destacar a perícia com que Veríssimo, ao mesmo tempo que informa o leitor dos eventos marcantes da política brasileira no período – a Era Vargas (1930 – 1945), o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956 – 1961) e a administração, suspeita de comunismo, de Jango Goulart (1961 – 1964) –, tempera a narrativa com as reações das personagens, preocupadas sempre com a defesa de seus interesses de propriedade, perante os rumos que tomava a história nacional. Há tiradas de bastante humor, como esta:
Quando chegou a Antares a notícia de que as Forças Armadas, sob o comando do ministro da Guerra, tinham acabado de dar um golpe de Estado, Tibério Vacariano exultou, saiu para a rua, fez um comício mirim na praça, e bravateou durante o chimarrão das dez. O país estava salvo!
Sua alegria, porém, foi de curta duração, pois em breve se esclareceu que a finalidade daquele movimento militar fora a de garantir a posse dos candidatos eleitos [Juscelino Kubitschek como presidente da República e João Goulart, seu vice]. Tratava-se, em suma – alegavam os seus autores –, dum “golpe preventivo”.
Ao saber disso, Tibério soltou um palavrão, entrou no seu jipe e tocou para a estância, onde passou o verão inteiro no convívio das vacas que – segundo ele próprio agora dizia – lhe mereciam mais confiança que os políticos e os generais. (Capítulo 48, p. 97)
O capítulo 59 encerra com o fracasso de uma experiência parlamentar de 16 meses no Brasil e o retorno dos poderes presidenciais às mãos de Jango. O capítulo 60 introduz o episódio final da primeira parte, que dará ocasião ao narrador para responder a seguinte pergunta: “Que tipo de cidade era Antares e que espécie de gente a habitava e governava ao tempo em que ocorreu o macabro incidente que em breve se vai narrar?” (p. 124) Trata-se de uma pesquisa sociológica sobre o município gaúcho realizada pelo Prof. Martim Francisco Terra, da Universidade do Rio Grande do Sul, e um grupo de estudantes, entre os quais estava Xisto, neto de Tibério Vacariano.
Em diálogo com o Prof. Terra sobre a reação desfavorável dos antarenses ao resultado do estudo, o livro “Anatomia de uma cidade gaúcha de fronteira”, Xisto se refere a um diário que seu mestre mantivera durante as atividades de campo na cidade, de cujos determinados trechos o narrador se serve, já que “[...] menciona ou comenta pessoas e lugares que viriam a ser envolvidos no controvertido 'incidente' de 13 de dezembro de 1963 [...]” (Capítulo 69, p. 146): Tibério Vacariano e Quitéria Campolargo, esta última presidente dos Legionários da Cruz, uma sociedade organizada para lutar contra o “esquerdismo” de Jango e Leonel Brizola e em prol da religião e da moral; a Praça da República e a Rua Voluntários da Pátria; os médicos rivais, Dr. Lázaro Bertioga e Dr. Erwin Falkenburg; o major Vivaldino Brazão, prefeito de Antares e “orquidófilo” amador; Lucas Faia (ou Lucas Lesma), diretor do jornal local, A Verdade, e seus acessores: o Ferreirinha e o Vitório Natal, o colunista social; Dominique, a mulata haitiana que “recebia santo”, mulher do gerente da Cia. Franco-Brasileira de Lãs, M. Duplessis; o maestro fracassado Menandro Olinda; o Padre Gerôncio, vigário da igreja matriz; o Prof. Libindo Olivares, diretor do Ginásio Nacional, que alegava manter correspondência com celebridades mundiais – Jean-Paul Sartre, João XXIII, François Mauriac e Marcel Proust – e recebia em sua casa quase todas as noites os seus “efebos” (seu nome sugere um divertido trocadilho com a palavra “libido”); e o Padre Pedro-Paulo, capelão da Vila Operária e adepto de um “[...] cristianismo militante e não apenas teórico, 'simpatizante'” (Capítulo 79, p. 183), desse modo, talvez, uma figura que aludisse à Teologia da Libertação, tipicamente latino-americana, que começava a florescer nesse período.
A segunda parte da obra, composta em 102 capítulos, tem início com a greve geral dos trabalhadores da indústria, do comércio, dos transportes e da energia elétrica em 11 de dezembro. Nesse mesma data, seis pessoas morrem, entre elas Dona Quitéria, vítima de um ataque cardíaco. Saindo do velório da matriarca dos Campolargos, o Dr. Cícero Branco, advogado, tomba em decorrência de um derrame cerebral.
Os grevistas, tendo à frente o líder operário Geminiano Ramos, interditam o cemitério local e impedem o sepultamento dos sete mortos, cujos caixões com seus corpos são deixados junto ao muro. Na noite de quinta para sexta-feira, os defuntos saem de seus esquifes e deliberam entre si descer até a Praça da República e exigir o enterro, sob ameaça de permanecer apodrecendo no coreto. Na manhã da sexta-feira 13, Dona Quitéria Campolargo, o Dr. Cícero Branco e os outros cinco mortos – o sapateiro “Barcelona”, o maestro Menandro Olinda, o jovem João Paz, a prostituta Erotildes e o ébrio “Pudim de Cachaça” – seguem para Antares e, entre sustos, visitas a pessoas conhecidas, advertências e intimações, defrontam-se com os representantes do poder público e rural e o povo da cidade ao meio-dia.
Percebendo que sua reivindicação não será atendida, os cadáveres, cujo aspecto nauseante o narrador vem descrevendo com uma crueza de impressionar, vociferam insultos e acusações contra os seus interlocutores – hipocrisia, peculato, abuso de poder, tortura, assassinato, adultério, fraude de laudo médico, pederastia –, provocando em alguns comoção e mal-estar, além de brigas e separações de vários casais.
Uma infestação de ratos e a suspeita de contaminação da água causam ainda mais pânico na população, carregando nas cores apocalípticas o pano de fundo para a lavagem de roupa suja que as famílias começam a fazer.
Ao raiar do sábado, Tranqüilino de Almeida, chefe dos guardas aduaneiros, e um grupo de quinze ou vinte homens atacam cadáveres e urubus a tiros, garrafas, pedaços de madeiras e tijolos. Acatando, então, uma proposta do Dr. Cícero Branco, os mortos voltam aos seus caixões. A assembléia geral do sindicato dos industriários aprovara na noite anterior suspender o cerco ao cemitério, razão pela qual os sepultamentos puderam ser feitos.
O livro termina com as autoridades de Antares desmentindo o ocorrido perante equipes da imprensa de Porto Alegre que vão até lá investigar e promovendo eventos para restabelecer a honra dos cidadãos que tiveram a sua reputação manchada pelas denúncias dos defuntos. A cena final da criança tentando ler a palavra “Liberdade”, um “palavrão” pichado num muro por um estudante, que os empregados da Prefeitura se apressavam para apagar, sugere que, ao contrário dos sete mortos, a podridão da impunidade insistia em permanecer insepulta em Antares.
“Incidente em Antares” demonstra a maestria com que Erico Verissimo, gaúcho de Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul, domina não só a arte de escrever, mas também uma variedade de campos de conhecimento, desde a História do Brasil e do Mundo, a literatura da Bíblia e a fascinante tradição cultural, bem como o imaginário mitológico, do Rio Grande do Sul - menciona-se, por exemplo, no capítulo 6, a lenda da Salamanca do Jarau.* Desse modo, torna-se plausível considerar a obra, publicada em 1971, uma representante do realismo fantástico, tendência literária surgida no século XX como forma de reação às ditaduras implantadas em países da América Latina durante as décadas de 1960 e 1970. É uma leitura agradável e instrutiva, pela qual a Abril Cultural deve ser parabenizada ao fornecer aos leitores essa publicação.
Ruben Marcelino Bento da Silva
A obra está dividida em duas partes, as quais, embora haja continuidade entre elas, diferem no foco. A primeira parte inscreve a cidade fictícia de Antares no cenário político brasileiro desde a primeira metade do século XIX até a década de 1960; a segunda narra o incidente propriamente dito que dá o título à obra.
“Antares”, a primeira parte, com 79 capítulos, prepara o leitor para a narração do incidente na segunda parte. O narrador expõe deste modo o plano de obra:
Melhor será contar primeiro, de maneira tão sucinta e imparcial quanto possível, a história de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma idéia mais clara do palco, do cenário e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaria, desse drama talvez inédito nos anais da espécie humana. (Capítulo 1, p. 10)
É nítida a ironia do fragmento, já que a comparsaria é o elemento fundamental (e nada inédito) de articulação da história, pois dá forma concreta às manobras que vinculam personalidades antarenses de prestígio aos movimentos da política e da economia nacional e sustenta a farsa orquestrada por essas mesmas personalidades a fim de encobrir-lhes as imoralidades denunciadas pelo incidente.
O leitor é inicialmente apresentado às duas principais famílias de Antares, os Vacarianos e os Campolargos, cuja rixa mortal marca a história da cidade até meados da década de 1920, época em que Getúlio Vargas, então deputado federal do Partido Republicano pelo Estado do Rio Grande do Sul, propõe a paz entre elas.
Comunidade da região que abriga os Sete Povos das Missões (São Francisco de Borja, São Nicolau, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Miguel Arcanjo, São Luís Gonzaga e Santo Ângelo Custódio), a noroeste do Rio Grande do Sul e próxima à fronteira com a Argentina, Antares – outrora Povinho da Caveira – era “um lugarejo pertencente à comarca de São Borja, [...] formado por uma escassa dúzia de ranchos pobres, perto da barranca do rio” (Capítulo 2, p. 11). Segundo o narrador, a descrição é tomada da obra de um naturalista francês, Gaston Gontran d’Auberville, que cruza o rio Uruguai e chega a esse povoado entre 1830 e 1831. O cientista narra o seu encontro com o proprietário das terras, Francisco Vacariano. Em uma noite, quando o francês lhe mostra a estrela Antares, “Chico” Vacariano – para quem a palavra significaria “lugar onde existem muitas antas” – considera-o um “Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da Caveira” (Capítulo 3, p. 14). Outro documento histórico, fornecido pelo narrador, é uma carta escrita em 1832 por um missionário católico argentino, Padre Juan Bautista Otero, o qual relata ao seu superior como obtivera permissão do dono das terras de Povinho da Caveira, Francisco Bacariano, para fazer casamentos e batizados.
Após situar Francisco Vacariano no contexto da Guerra dos Farrapos (1835 – 1845), em que fazia um jogo duplo entre revolucionários republicanos e tropas imperiais que favorecesse a manutenção de suas terras, e da elevação do Povinho da Caveira a vila em 1853, quando recebe oficialmente o nome de Antares, o narrador conta, no capítulo 6, a origem de sua rivalidade com Anacleto Campolargo, criador de gado que decide comprar terras nas proximidades por volta de 1860. Desse ponto em diante, o leitor é conduzido pelos embates sangrentos entre as duas famílias que atravessam momentos políticos importantes da História do Brasil – a Guerra do Paraguai (1864 – 1870), a assinatura da Lei Áurea (1888), a proclamação da República (1889) e a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893 – 1895). As inovações científicas do final do século XIX e princípio do XX – as estradas de ferro, o telefone, a luz elétrica e o automóvel – também servirão de pretexto para as rusgas entre os Vacarianos e os Campolargos.
As boas relações entre os representantes dos dois principais clãs de Antares, após a intervenção do “Homem de São Borja”, ocuparão a maior extensão da primeira parte da obra (do capítulo 24 ao 79), concentradas principalmente em torno do patriarca dos Vacarianos, Tibério, e da matrona dos Campolargos, Quitéria ou Dona Quita. Tanto um como a outra surgem como enérgicos analistas (e ativistas) políticos entre as turbulentas décadas de 1930 e 1960. É importante destacar a perícia com que Veríssimo, ao mesmo tempo que informa o leitor dos eventos marcantes da política brasileira no período – a Era Vargas (1930 – 1945), o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956 – 1961) e a administração, suspeita de comunismo, de Jango Goulart (1961 – 1964) –, tempera a narrativa com as reações das personagens, preocupadas sempre com a defesa de seus interesses de propriedade, perante os rumos que tomava a história nacional. Há tiradas de bastante humor, como esta:
Quando chegou a Antares a notícia de que as Forças Armadas, sob o comando do ministro da Guerra, tinham acabado de dar um golpe de Estado, Tibério Vacariano exultou, saiu para a rua, fez um comício mirim na praça, e bravateou durante o chimarrão das dez. O país estava salvo!
Sua alegria, porém, foi de curta duração, pois em breve se esclareceu que a finalidade daquele movimento militar fora a de garantir a posse dos candidatos eleitos [Juscelino Kubitschek como presidente da República e João Goulart, seu vice]. Tratava-se, em suma – alegavam os seus autores –, dum “golpe preventivo”.
Ao saber disso, Tibério soltou um palavrão, entrou no seu jipe e tocou para a estância, onde passou o verão inteiro no convívio das vacas que – segundo ele próprio agora dizia – lhe mereciam mais confiança que os políticos e os generais. (Capítulo 48, p. 97)
O capítulo 59 encerra com o fracasso de uma experiência parlamentar de 16 meses no Brasil e o retorno dos poderes presidenciais às mãos de Jango. O capítulo 60 introduz o episódio final da primeira parte, que dará ocasião ao narrador para responder a seguinte pergunta: “Que tipo de cidade era Antares e que espécie de gente a habitava e governava ao tempo em que ocorreu o macabro incidente que em breve se vai narrar?” (p. 124) Trata-se de uma pesquisa sociológica sobre o município gaúcho realizada pelo Prof. Martim Francisco Terra, da Universidade do Rio Grande do Sul, e um grupo de estudantes, entre os quais estava Xisto, neto de Tibério Vacariano.
Em diálogo com o Prof. Terra sobre a reação desfavorável dos antarenses ao resultado do estudo, o livro “Anatomia de uma cidade gaúcha de fronteira”, Xisto se refere a um diário que seu mestre mantivera durante as atividades de campo na cidade, de cujos determinados trechos o narrador se serve, já que “[...] menciona ou comenta pessoas e lugares que viriam a ser envolvidos no controvertido 'incidente' de 13 de dezembro de 1963 [...]” (Capítulo 69, p. 146): Tibério Vacariano e Quitéria Campolargo, esta última presidente dos Legionários da Cruz, uma sociedade organizada para lutar contra o “esquerdismo” de Jango e Leonel Brizola e em prol da religião e da moral; a Praça da República e a Rua Voluntários da Pátria; os médicos rivais, Dr. Lázaro Bertioga e Dr. Erwin Falkenburg; o major Vivaldino Brazão, prefeito de Antares e “orquidófilo” amador; Lucas Faia (ou Lucas Lesma), diretor do jornal local, A Verdade, e seus acessores: o Ferreirinha e o Vitório Natal, o colunista social; Dominique, a mulata haitiana que “recebia santo”, mulher do gerente da Cia. Franco-Brasileira de Lãs, M. Duplessis; o maestro fracassado Menandro Olinda; o Padre Gerôncio, vigário da igreja matriz; o Prof. Libindo Olivares, diretor do Ginásio Nacional, que alegava manter correspondência com celebridades mundiais – Jean-Paul Sartre, João XXIII, François Mauriac e Marcel Proust – e recebia em sua casa quase todas as noites os seus “efebos” (seu nome sugere um divertido trocadilho com a palavra “libido”); e o Padre Pedro-Paulo, capelão da Vila Operária e adepto de um “[...] cristianismo militante e não apenas teórico, 'simpatizante'” (Capítulo 79, p. 183), desse modo, talvez, uma figura que aludisse à Teologia da Libertação, tipicamente latino-americana, que começava a florescer nesse período.
A segunda parte da obra, composta em 102 capítulos, tem início com a greve geral dos trabalhadores da indústria, do comércio, dos transportes e da energia elétrica em 11 de dezembro. Nesse mesma data, seis pessoas morrem, entre elas Dona Quitéria, vítima de um ataque cardíaco. Saindo do velório da matriarca dos Campolargos, o Dr. Cícero Branco, advogado, tomba em decorrência de um derrame cerebral.
Os grevistas, tendo à frente o líder operário Geminiano Ramos, interditam o cemitério local e impedem o sepultamento dos sete mortos, cujos caixões com seus corpos são deixados junto ao muro. Na noite de quinta para sexta-feira, os defuntos saem de seus esquifes e deliberam entre si descer até a Praça da República e exigir o enterro, sob ameaça de permanecer apodrecendo no coreto. Na manhã da sexta-feira 13, Dona Quitéria Campolargo, o Dr. Cícero Branco e os outros cinco mortos – o sapateiro “Barcelona”, o maestro Menandro Olinda, o jovem João Paz, a prostituta Erotildes e o ébrio “Pudim de Cachaça” – seguem para Antares e, entre sustos, visitas a pessoas conhecidas, advertências e intimações, defrontam-se com os representantes do poder público e rural e o povo da cidade ao meio-dia.
Percebendo que sua reivindicação não será atendida, os cadáveres, cujo aspecto nauseante o narrador vem descrevendo com uma crueza de impressionar, vociferam insultos e acusações contra os seus interlocutores – hipocrisia, peculato, abuso de poder, tortura, assassinato, adultério, fraude de laudo médico, pederastia –, provocando em alguns comoção e mal-estar, além de brigas e separações de vários casais.
Uma infestação de ratos e a suspeita de contaminação da água causam ainda mais pânico na população, carregando nas cores apocalípticas o pano de fundo para a lavagem de roupa suja que as famílias começam a fazer.
Ao raiar do sábado, Tranqüilino de Almeida, chefe dos guardas aduaneiros, e um grupo de quinze ou vinte homens atacam cadáveres e urubus a tiros, garrafas, pedaços de madeiras e tijolos. Acatando, então, uma proposta do Dr. Cícero Branco, os mortos voltam aos seus caixões. A assembléia geral do sindicato dos industriários aprovara na noite anterior suspender o cerco ao cemitério, razão pela qual os sepultamentos puderam ser feitos.
O livro termina com as autoridades de Antares desmentindo o ocorrido perante equipes da imprensa de Porto Alegre que vão até lá investigar e promovendo eventos para restabelecer a honra dos cidadãos que tiveram a sua reputação manchada pelas denúncias dos defuntos. A cena final da criança tentando ler a palavra “Liberdade”, um “palavrão” pichado num muro por um estudante, que os empregados da Prefeitura se apressavam para apagar, sugere que, ao contrário dos sete mortos, a podridão da impunidade insistia em permanecer insepulta em Antares.
“Incidente em Antares” demonstra a maestria com que Erico Verissimo, gaúcho de Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul, domina não só a arte de escrever, mas também uma variedade de campos de conhecimento, desde a História do Brasil e do Mundo, a literatura da Bíblia e a fascinante tradição cultural, bem como o imaginário mitológico, do Rio Grande do Sul - menciona-se, por exemplo, no capítulo 6, a lenda da Salamanca do Jarau.* Desse modo, torna-se plausível considerar a obra, publicada em 1971, uma representante do realismo fantástico, tendência literária surgida no século XX como forma de reação às ditaduras implantadas em países da América Latina durante as décadas de 1960 e 1970. É uma leitura agradável e instrutiva, pela qual a Abril Cultural deve ser parabenizada ao fornecer aos leitores essa publicação.
Ruben Marcelino Bento da Silva
*Leia a lenda da Salamanca do Jarau:
http://www.ufpel.tche.br/pelotas/salamanca01.html
Leia sobre Erico Verissimo em: http://www.estado.rs.gov.br/erico/
Leia sobre Erico Verissimo em: http://www.estado.rs.gov.br/erico/
2 comentários:
Também resumistes com maestria essa fantástica obra! Parabéns!
Obrigado, Sandra!
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