"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

As virtudes teologais [5]: A esperança



O que o Antigo ou Primeiro Testamento da Bíblia cristã diz sobre esperança? Com o objetivo de apresentar algumas respostas, utilizarei este procedimento: mapear as ocorrências de algumas palavras nos textos hebraicos que assinalem ou sugiram esse conceito.


A primeira palavra que desejo destacar é tiqevah [a]. Essa palavra é oriunda de uma raiz (qavah [b]), cujo significado seria “[...] esperar ou procurar com grande expectativa” (1). Entre outras passagens, ela aparece em Rute 1.12-13aα, nas palavras de Noomi dirigidas às suas noras Orpá e Rute, ambas estrangeiras, de Moabe: “Voltai, minhas filhas, ide, pois eu estou velha para ser de um homem. Ainda que eu tivesse dito: 'Há para mim uma esperança: nesta noite fui novamente de um homem e gerei filhos', por isso esperaríeis até que eles crescessem?”. A palavra “esperança” surge para enfatizar o contrário: Até então não restava a Noomi uma perspectiva de vida, já que perdera seu marido e filhos, e considerava assim que YHWH, o Todo-Poderoso, fizera-lhe um mal (1.21bγ). De modo surpreendente, contudo, a moabita Rute se recusa a abandonar a sua sogra judia Noomi, conjurando em prejuízo próprio a intervenção de YHWH caso não permanecesse com ela até a morte. Graças à fidelidade de Rute (nome cujo significado é “amiga”), após todo o desenlace da história com Boaz, um parente do marido de Noomi que se casa com Rute e exerce a função de go'el [c] – aquele que garantia o direito de propriedade e a continuidade da descendência (2) –, a outrora amargurada e desamparada judia pôde ouvir das mulheres de Belém: “Bendito seja YHWH que não fez cessar para ti um goe'l hoje; seja proclamado o seu nome em Israel! Ele será para ti um retorno de vida e uma provisão na tua velhice, pois tua nora que te ama o gerou. Ela é melhor para ti do que sete filhos” (4.14aβ-15). A passagem se refere ao nascimento de Obed, filho de Rute com Boaz. Reconhece-se, portanto, que YHWH trouxe para Noomi a esperança novamente porque a sua nora estrangeira, provinda de um povo que é estigmatizado em outros textos (p.ex. Nm 25), foi uma amiga leal, disposta a abdicar de sua identidade nacional e religiosa em favor de sua sogra. É possível que se costume enfatizar nesse texto a conversão de Rute ao verdadeiro Deus. Eu prefiro chamar a atenção para a idéia de que Deus não está limitado às fronteiras de um grupo social, podendo nos abençoar por meio de pessoas das quais menos esperamos. Além disso, quero notar que as pessoas podem ser mais do que os estigmas que colocamos sobre elas. Lembro-me de ter lido no livro de C. S. Lewis, “Cristianismo puro e simples”, um pensamento que jamais esqueci: de que há pessoas que, embora não confessando Cristo, podem estar mais próximas dele do que alguns que o confessam.


Nos Salmos há muitas declarações de esperança. Eu encontro no Salmo 146 a palavra sever [d], a segunda que desejo tomar em consideração aqui. Ela provém de uma raiz (savar [e]), cujo sentido mais intensivo seria o de “aguardar” ou “esperar”. (3) “Avante, os passos daquele cujo auxílio é o Deus de Jacó; cuja esperança está em YHWH, seu Deus” (146.5). Percorre um caminho direito a pessoa que crê no auxílio de YHWH em seu favor, porque o agir de Deus manifesta-se em justiça e salvação. Nesta esperança precisamos permanecer. Amém!


Notas:


  1. HARRIS, R. Laird; ARCHER, JR., Gleason; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 1328.

  2. "Os membros da família em sentido amplo devem uns aos outros ajuda e proteção. [...] O go'el é um redentor, um defensor, um protetor dos interesses do indivíduo e do grupo. [...] Quando um israelita precisa vender seu patrimônio, o go'el tem direito preferencial na compra, pois é muito importante evitar a alienação dos bens da família. A lei está codificada em Lv 25.25. [...] O costume é ilustrado também na história de Rute, mesmo que aí a compra da terra se complique por um caso de levirato. Noemi tem uma posse que a pobreza a obriga a vender; sua nora Rute é viúva e sem filhos. Boaz é um go'el de Noemi e de Rute, Rt 2.20; mas há um parente mais próximo que pode exercer o direito de go'el antes que Boaz, Rt 3.12; 4.4. Esse primeiro go'el estaria disposto a comprar a terra, mas não aceita a dupla obrigação de comprar a terra e casar com Rute, pois o filho que nascesse dessa união levaria o nome do defunto e herdaria a terra, Rt 4.4-6. Boaz adquire então a posse da terra e se casa com Rute, Rt 4.9,10". DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 43-44. Sobre a lei do levirato (do latim levir, "cunhado"), cf. Gn 38; Dt 25.5-10; Mc 12.18-27 par.
  3. HARRIS, R. Laird; ARCHER, JR., Gleason; WALTKE, Bruce K. Op. Cit., p. 1465.


Referências Bibliográficas:


DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Editora Teológica, 2003. 622 p.


HARRIS, R. Laird; ARCHER, JR., Gleason; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. Trad. Márcio Loureiro Redondo, Luiz A. T. Sayão e Carlos Osvando C. Pinto. São Paulo: Vida Nova, 1998. 1789 p.


RÜGER, H. P. Biblia Hebraica Stuttgartensia. 4. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1990. 1574 p.

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