"Então, falando ele estas coisas em sua defesa, Festo disse em alta voz:
Estás louco, Paulo! As muitas letras te levam à insanidade!"
(Atos dos Apóstolos 26.24)

quinta-feira, agosto 20, 2009

JESUS, O NOVO TEMPLO

Apresentei esta "prédica" na Paróquia Evangélica Espírito Santo, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), em Novo Hamburgo (RS), no dia 16 de agosto de 2009, convidado pela Pastora Carla Saueressig, com quem vou me casar.


Texto: Lucas 23.44-49.

INTRODUÇÃO

A celebração da Ceia do Senhor é uma ocasião importantíssima para a igreja cristã. Martim Lutero considera a Santa Ceia um testamento de Cristo: “Cristo partilha seu corpo e sangue mediante o pão e o vinho, enquanto o ser humano recebe essas dádivas” .[1] Hoje, pela manhã, ouvia na Rádio União, um coral que cantava o seguinte: “Por um pedaço de pão e um pouquinho de vinho, Deus se tornou refeição e se fez o caminho”.[2] Cabe, portanto, neste momento, pensar a respeito da morte de Jesus. Particularmente, gostaria que fizéssemos a leitura da narrativa em Lucas 23.44-49.


1. O CENÁRIO DA MORTE E O VÉU RASGADO

É uma narrativa curiosa. Ela também aparece em Mateus (27.45-56) e Marcos (15.33-41). As sequências narrativas são as seguintes:




Além das diferenças de tamanho, detalhes e estrutura que apresenta de evangelho para evangelho, a narrativa é curiosa porque coloca no cenário da morte de Jesus uma informação que aparentemente não tem nada a ver: o véu do Templo é rasgado. De repente, o leitor é transportado do Calvário para o Templo de Jerusalém e, rapidamente, trazido de novo ao Calvário. Por quê?

2. O TEMPLO DE JERUSALÉM E O VÉU DO SANTO DOS SANTOS

O Templo era uma instituição muito importante para o judaísmo daquela época. Segundo os livros de Samuel e Reis, havia sido prometido por Deus a Davi: Salomão, o filho de Davi, construiria o Templo e ali Deus habitaria no meio de Israel (2Samuel 7.12-13; 1Reis 6.12-13). O 1º Templo foi construído, então, por Salomão. Após o exílio babilônico, foi reconstruído no tempo de Zorobabel, durante o período persa (cf. Esdras 4.24 - 6.22; Ageu 1.1 - 2.9). Este Templo passou por restaurações durante o período de Herodes, o Grande[3], o mesmo que perseguiu Jesus menino (Mateus 2).

No interior do edifício do Templo, um véu separava o Santo dos Santos do Santo Lugar, o salão maior. O véu é antes mencionado em Êxodo 26.31-33: “Pendurarás o véu debaixo dos colchetes e trarás para lá a arca do Testemunho para dentro do véu; o véu vos fará separação entre o Santo Lugar e o Santo dos Santos” (v. 33).[4] Em seguida, também se fala dele durante a construção do 1o Templo: “E cobriu Salomão a casa por dentro de ouro puro, e, com cadeias de ouro, pôs um véu diante do oráculo, e o cobriu com ouro” (1Rs 6.21; cf. 6.16)[5]. O véu, portanto, separava o Santo Lugar do Santo dos Santos, tanto no Tabernáculo de Moisés quanto no Templo de Salomão.

O que se fazia no Santo dos Santos? De acordo com Levítico 16 (cf. 23.26-32), o sacerdote entraria uma vez por ano (v. 34) “para dentro do véu” (v. 11-12), com vestimentas sagradas especiais e banhado em água (v. 4), a fim de oferecer o sangue por meio do qual faria a expiação dos pecados por si e sua família (v. 11) e pelo povo (v. 15). O sangue era oferecido sobre o propiciatório, a peça que ficava por cima da arca da Aliança (v. 14-15). O chamado “Dia da Expiação” ocorria no dia 10 do mês de Tishrei, o sétimo do calendário judaico (Levítico 23.27). Neste ano de 2009, o Dia da Expiação (Yom Kippur) será comemorado em 28 de setembro.[6]

3. O VÉU DO TEMPLO E A MORTE DE JESUS

Podemos pensar que, quando os três primeiros Evangelhos mencionam rapidamente o véu do Templo na narrativa da morte de Jesus, pretendem fazer uma relação. O que o véu rasgado tem a ver com a morte de Jesus?

Se o véu que cobria a entrada do lugar onde a expiação era feita foi rasgado, concluímos que foi retirado o impedimento de acesso à presença de Deus. De acordo com o Levítico, Deus aparecia no Santo dos Santos por sobre o propiciatório (16.2). Já que o sacerdote deveria apresentar ali o sangue para fazer a expiação, a morte de Jesus é divulgada nos Evangelhos como a oferta de expiação aceita definitivamente por Deus. É possível dizer que a morte de Jesus representa, ao mesmo tempo, a manifestação de Deus que oferece o perdão e a oferta entregue a Deus pelos pecados. É em Jesus e por Jesus que se dá o perdão dos pecados e a reconciliação com o SENHOR.

Se notarmos a linguagem de Lucas, perceberemos que, após se rasgar o véu no Templo, Jesus entrega a sua vida ao Pai. Parece que o autor quer dizer que não é mais no Templo e do sacerdote que Deus receberá a oferta expiatória e perdoará o seu povo. Isso aconteceu no Calvário, onde, na cruz, Jesus ofereceu a sua vida a Deus. No Evangelho de João, inclusive, o corpo de Jesus é chamado de “templo” (João 2.21).[7] Na Carta aos Hebreus, o autor chama a carne de Jesus (isto é, o seu corpo) de “véu”, através do qual o Filho de Deus consagrou um caminho novo e vivo de perdão (Hebreus 10. 20).

Com este episódio, o evangelista pretende confirmar a fé com a qual o destinatário de seus livros, Teófilo, fora instruído (Lucas 1.4): “Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão dos pecados a todas as nações, começando de Jerusalém” (Lucas 24.46-47).

É interessante que, diante deste “Templo”, o centurião romano reconheça a manifestação da justiça. É certo que suas palavras indicam especificamente que Jesus não tinha culpa que merecesse aquele castigo. Mas não dá para deixar de pensar que Jesus é o novo Templo, através do qual judeus e não-judeus podem encontrar a justiça de Deus, por meio da conversão e do perdão.

Podemos lembrar aqui de Paulo. Ele transmitiu aos coríntios a fé que havia recebido: “[...] Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras [...]” (1Coríntios 15.3).[8]

CONCLUSÃO

Ao participar da Ceia, por meio do texto lido no Evangelho de Lucas, podemos refletir sobre a morte de Jesus como o culto perfeito: Jesus entrega a sua vida como oferta única de expiação e Deus manifesta-se para reconciliar o ser humano consigo. Por isso, Jesus é o novo Templo, onde se pode encontrar Deus através da conversão e do perdão.

Notas:

[1] JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero, p. 32.

[2] PADRE ZEZINHO. Por um pedaço de pão. Disponível em http://www.letras.com.br/padre-zezinho/por-um-pedaco-de-pao. Acesso em 16/08/2009.

[3] A Bíblia de Jerusalém, p. 1803, nota “l” (relativa a Ageu 2.9); cf. a nota "t", na página 1989, relativa a João 2.20: "A reconstrução do Templo havia sido iniciada no ano 19 antes de nossa era, o que situa a cena na Páscoa do ano 28."

[4] Almeida Revista e Atualizada.

[5] Almeida Revista e Corrigida.

[6] http://www.candlelightingtimes.org/shabbos/br.htm. Acesso em 15/08/2009.

[7] Almeida Revista e Corrigida. A Almeida Revista e Atualizada traz “santuário”.

[8] Almeida Revista e Atualizada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A Bíblia: Almeida Revista e Atualizada no Brasil. 2.ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

A Bíblia: Almeida Revista e Corrigida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1985. 2366 p.

JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Trad. Ilson Kayser et. alii. São Leopoldo: Sinodal, 2001. 188 p.

http://www.bible-architecture.info/4.The_8.gif. Acesso em 20/08/2009. Templo de Herodes.

http://www.candlelightingtimes.org/shabbos/br.htm. Acesso em 15/08/2009.

domingo, agosto 02, 2009

Homem de Deus?

No dia 22 de abril, minha tia Angélica mandou-me o recado que transcrevo abaixo:

Rubinho, seja sempre um homem de Deus. Você, pequenino, gostava de dizer: Bem-aventurado o varão que põe no Senhor a sua confiança. Pratique sempre essa verdade.

A citação é do Salmo 40.5(4) [cf. Jeremias 17.7].

Sabe o que é curioso? Eu não me lembro de ter dito isso. Nada fora do normal. Eu era uma criança. Todavia, essa "revelação" causou-me um certo impacto. Afinal, vai já muito tempo e eu mudei tanto...

Em minha ingenuidade infantil (quando para a gente tudo é simples), essas palavras deviam soar naturalmente, como uma verdade que não precisava ser demonstrada. Talvez eu nem mesmo me preocupasse com que esses dizeres viessem acompanhados de uma verificação posterior, a famosa "experiência de fé", cuja concretização deveria ser objeto de testemunho público. Na certa, "Bem-aventurado o varão que põe no Senhor a sua confiança" era tão tranquilo para mim quanto sair a brincar, que é o que eu provavelmente fui fazer logo após ter recitado o versículo para a minha tia.

É engraçado que eu fui crescendo e Deus se tornando algo cada vez mais difícil. Sim, eu conheço bastante (embora sempre insuficientemente) a Bíblia, já fiz jornadas de oração e acreditei em tantas coisas. Ouvi vários sermões, uns bons, outros ruins, porém que, geralmente, sinalizavam que continuamente faltava algo. Em mim, no mundo, na existência.

Aos poucos, também por meus estudos e observações pessoais, ia possuindo conteúdo de mais e segurança de menos. O que venho sabendo é de uma pequenez infinitesimal, porém Deus foi tornando-se uma crescente incógnita e a espiritualidade um quebra-cabeças. Deus se expressa através de uma única religião? Há destino? Por que as pessoas são boas "e" más? Como Deus pode permanecer impassível perante o sofrimento no universo? O ser humano dotado de consciência e liberdade não é um risco demasiadamente alto? A transitoriedade decorrente da contínua transformação da matéria não dá a impressão de que, por mais elevado que seja o grau de nossa inserção no mundo, somos apenas como plástico, papel, restos orgânicos ou latinhas de refrigerante dentro de uma astronômica usina de reciclagem?

Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre.
Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir.
O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol.

(Eclesiastes 1.4, 8-9) [1]

É evidente a falta de algo. "É o pecado original que faz isso", dirão alguns. Acontece que justamente é o pecado, o mal, a decrepitude, a impotência que parece representarem o que há de mais "original" em nós. Como começou tudo isso? Arriscaria que, enquanto intenção, começou, tragicamente, com o surgimento da faculdade da consciência.

A consciência, todavia, anda inquieta com sua própria condição, uma vez que a bondade e a felicidade ela também é capaz de experimentar e expressar. Mas por que tais coisas não são perenes? Por que hoje somos benevolência e amanhã malevolência?

Aconselhou-me minha tia a ser sempre um homem de Deus. Se intuo que Deus criou o mundo, estou incluído nessa criação e, por isso, não há como deixar de ser um homem "de Deus". Por outro lado, sempre um "homem de Deus" tal quais as exigências da fé judaico-cristã sinto que há de envolver continuamente a devoção mas também a crítica dos pressupostos de minha crença: Deus revelou-se ao ser humano porque este, sendo pecador, precisa ser salvo.

A revelação (que não é exclusividade do Judaísmo e do Cristianismo) é um fenômeno, isto é, dá-se pela percepção humana da realidade do sagrado. Desnecessário dizer que a ideia de que a pessoa apenas percebe porque Deus tomou a iniciativa já está incluída na compreensão mesma dessa experiência. Em outras palavras, integra o acontecimento da revelação (que é sempre biopsicoespiritual) já tornado "discurso", discurso da fé. E como a fé é atividade humana e se traduz em linguagem, será historicamente condicionada por esta linguagem, visto que toda a interação do ser humano com o mundo é linguagem.

As "fés" testemunhadas pelos livros canônicos da Bíblia são quadros históricos somente possíveis e compreensíveis naqueles momentos históricos em que se produziram os testemunhos. As linguagens bíblicas são linguagens próprias daquelas circunstâncias históricas. Algo dessas expressões filosófico-linguísticas tornou-se padrão "técnico" de discurso das espiritualidades decorrentes ao longo dos séculos: Deus Pai; Cristo; céu e terra; Reinado de Deus; corpo, alma e espírito; predestinação; Espírito Santo; diabo; anjos; Escrituras; etc.

De que modo compreender, à luz do conhecimento cada vez mais extenso sobre a natureza (e "revelador" de nosso insistente desconhecimento) e da pluralidade de formas e cosmovisões filosóficas e religiosas, a proposta cristã que se estabeleceu no Ocidente? E que dizer dos cristianismos que se perderam (gnósticos, ebionitas, docetas, etc.)? Os conceitos comunicados pelas expressões filosófico-linguísticas supracitadas são capazes de dar conta das questões colocadas pelo mundo moderno? Dizia Drummond que, por trás da porta, a Verdade se compunha de metades diferentes umas das outras, por cujas belezas só era possível optar. [2] Que espiritualidade(s) responderá(ão) a um mundo (parece) irrevogavelmente percebido como um conjunto de "meias verdades" não coincidentes?

Segundo a Bíblia Hebraica, o homem de Deus que viera de Judá a Betel, visto que falhara, o leão encontrou e matou (1Reis 13.21-24). Se toda linguagem é metafórica, já que estabelece a "comparação" como mecanismo de compreensão da(s) realidade(s), tal narrativa comporta alguma razoabilidade dentro da era da física quântica, da astronomia, das pesquisas da evolução das espécies, da engenharia genética, do "livre-arbítrio" individual e da diversidade de pensamentos? Nas esquinas do século XXI, o homem de Deus e o leão ainda se encontram, mesmo que pacificamente?

Notas:

[1] Almeida Revista e Atualizada.

[2] http://www.memoriaviva.com.br/drummond/poema072.htm